A questão da moradia e os conflitos pela posse da terra no meio urbano formam o centro de um debate importante, que é objeto de artigo escrito pelo consultor jurídico aposentado Mário Montanha Teixeira Filho. O texto, Conflitos de terra e Poder Judiciário: a desocupação do Pinheirinho, aborda a atuação da Justiça diante de um caso específico, que aconteceu na cidade de São José dos Campos, interior de São Paulo, em janeiro de 2012, e integra um livro lançado em agosto deste ano. Trata-se da obra Direito, Gestão & Democracia: estudos em homenagem ao ministro Felix Fischer, coordenada pelo presidente do Tribunal de Justiça do Paraná, desembargador José Laurindo de Souza Netto, pelo procurador-geral do Ministério Público do Paraná, Gilberto Giacoia, e pelo diretor da Escola do Ministério Público, Eduardo Cambi.

 

Confira, abaixo, a introdução do artigo e o link para acesso do texto integral.

cIDADE

Cidade (detalhe) – Antonio Bandeira (1949)


 

 

INTRODUÇÃO

A desocupação do Pinheirinho por tropas da Polícia Militar de São Paulo, no início de 2012, é o tema central deste artigo[1]. O episódio, que alcançou grande repercussão, nacional e internacional, refletiu, em primeiro plano, a crise de habitação que atinge os centros urbanos no Brasil. Mais do que isso, ele fortaleceu os debates sobre a forma como o Poder Judiciário é utilizado para reprimir a expansão das lutas por direitos sociais.

O Pinheirinho corresponde a uma área de um milhão e trezentos mil metros quadrados situada no município de São José dos Campos, no Vale do Paraíba, interior paulista. Viviam ali mais de sete mil pessoas[2], reunidas numa ocupação que teve início em 2004, organizada por trezentas famílias que haviam sido expulsas de um terreno próximo, no bairro Campo dos Alemães. Vinculado à Selecta Comércio e Indústria S.A., o imóvel permaneceu abandonado durante mais de duas décadas, até ser transferido, no início dos anos 1980, para o domínio daquela empresa, cuja falência foi decretada em 1989[3]. Na madrugada de 22 de janeiro de 2012, uma operação militar comandada pela Justiça Estadual de São Paulo, responsável pela concessão de liminar de reintegração de posse ao grupo que se apresentava como dono do terreno, arrasou o Pinheirinho. Essa intervenção se fez com base no pressuposto de que o Estado, diante de conflitos individuais ou coletivos, atua como aparelho ideologicamente neutro e descomprometido, uma ideia que, transportada para a esfera jurídica, reduz o direito ao âmbito das prescrições normativas (FARIA, 1986, p. 85).

No papel de mediador que lhe caberia formalmente nessa estrutura, o Poder Judiciário, pela sua cúpula regional, anunciou uma posição equidistante e livre de interferências políticas, que lhe permitiria determinar, com base apenas em critérios legais, qual dos dois institutos postos em confronto seria mais importante. Entre a propriedade privada e a moradia, a preferência ficou com a primeira. O resultado dessa escolha foi um despejo gigantesco, acompanhado da destruição de casas e elementos urbanos, em nome da preservação de um patrimônio individual. Os órgãos encarregados de “dar eficácia” ao direito procuraram enquadrar a tarefa hermenêutica nos limites da lei abstrata, generalizante e desprovida de reflexos sociais, sem considerar que o conceito de neutralidade e completude que esse pensamento carrega é, ele mesmo, eminentemente ideológico (FREITAS, 2006, p. 7).

As controvérsias em torno do Pinheirinho envolvem, entre muitos outros incidentes, ações judiciais com tramitação nas comarcas de São Paulo e São José dos Campos, em juízos subordinados estruturalmente ao Tribunal de Justiça, além de passagens pela Justiça Federal. Mas é no campo político que se travaram os embates mais significativos, que chegaram a anunciar, poucos dias antes da intervenção policial, uma possibilidade de solução negociada para o impasse. Paralelamente a isso, existiram entendimentos discordantes sobre quais regras procedimentais deveriam ser aplicadas naquele momento. Enquanto a Justiça Estadual autorizava o desalojamento, dando respaldo técnico-jurídico à intervenção da Polícia Militar, a Justiça Federal despachava, mediante provocação de entidades ligadas à organização dos moradores, de modo a impedir, na prática, a remoção das casas edificadas no terreno.

Nesse quadro tumultuado, o comando formal de desocupação, consubstanciado em despacho liminar da 6ª Vara Cível de São José dos Campos, revelou o engajamento político das autoridades que o sustentaram, em contradição com o tecnicismo – ou a não preferência movida por fatores ideológicos – que lhes exige o dogmatismo predominante no sistema de aplicação da lei. Essa distorção faz parte de uma lógica na qual a propriedade privada se apresenta como direito irrestrito e absoluto, e se expõe com maior intensidade em contextos de luta, como no caso dos conflitos que marcaram o Pinheirinho.

Compreender a maneira como funcionou a máquina judiciária nesse caso é tarefa que demanda um esforço de superação do dogmatismo jurídico, que concebe o direito como um sistema fechado e definidor das relações em sociedade. Feito isso, será possível identificar o caráter oscilante do discurso impulsionado por essa corrente doutrinária. A ordem de reintegração de posse se baseou na aplicação literal e assistemática da norma – e só isso –, ignorando que, no período anterior ao despejo, havia sido desencadeada uma negociação entre as partes, na tentativa de rompimento do cerco burocrático imposto pela rigidez do processo. Essa articulação foi ampla, e envolveu, além dos interessados diretos, o Ministério Público, juízes de direito e parlamentares, num cenário marcado pela presença do “novo sujeito coletivo” definido por Wolkmer (1998, p. 94)[4].

Ainda assim, mesmo diante da possibilidade de interpretações que, por exemplo, deslocassem o caso Pinheirinho da Justiça Estadual de São Paulo para a Justiça Federal, a liminar de reintegração de posse, fundada na noção individualista de tutela de direitos, se manteve. O percurso não foi isento de controvérsias. A mesma noção positivista que se aplicou ao despacho liminar, de totalidade do sistema legal, deveria, no mínimo, adiar a desocupação, uma vez que se formava, na fase imediatamente anterior às ações militares, um conflito de competência a ser julgado por tribunais superiores. O imediatismo que cercou o cumprimento da decisão judicial feriu essa lógica, e fez com que o processo fosse contaminado por discursos e decisões de conteúdo político e ideológico bastante acentuado.

 

 


[1] Este artigo reúne trechos e informações extraídos diretamente da seguinte pesquisa | TEIXEIRA FILHO, Mário Montanha. A atuação do Poder Judiciário nos conflitos de terra: o caso do Pinheirinho. 247 f. Dissertação (Mestrado em Ciência Política) – Departamento de Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, Campinas (Unicamp), 2016. Disponível em: <http://repositorio.unicamp.br/jspui/handle/REPOSIP/322689>. Acesso em: 23/11/2021.

[2] Os números apurados pelos antigos moradores do Pinheirinho indicam que o terreno desocupado abrigava aproximadamente duas mil famílias. Na época do restabelecimento da liminar de reintegração de posse em favor da Selecta Comércio e Indústria S.A. (2011), cadastramento realizado pela Prefeitura de São José dos Campos estimava em 1659 o número de famílias instaladas na ocupação, formando um contingente de 5488 pessoas. Após o despejo, o Município, em ação conjunta com o Governo de São Paulo, iniciou o pagamento de auxílio-aluguel aos desabrigados, no valor de quinhentos reais. O benefício atingiu 1728 famílias, montante que não inclui todos os sem-teto. O mais provável, de acordo com esses dados, é que o acampamento tenha reunido 1840 famílias (aproximadamente 7400 pessoas).

[3] O processo de falência da Selecta Comércio e Indústria S.A. tramitou na 18ª Cível de São Paulo (Fórum José Mendes Júnior), nos autos nº 583.00.1989.713297-0 (000.04.078454-1).

[4] Conforme Wolkmer (1998, p. 94), ‘se o metafísico sujeito em si, o sujeito privado da tradição liberal-nacionalista, é o sujeito cognoscente a priori, que se adequa às condições do objeto dado e à realidade global estabelecida, o novo sujeito coletivo é um sujeito vivo, atuante e livre, que participa, autodetermina-se e modifica a mundialidade do processo histórico-social’.

 

 

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