Ao analisar a cobertura da grande mídia sobre a crise econômica e sanitária que atinge o País, a ombudsman da Folha de S. Paulo, Flavia Lima, alerta sobre o perigo das generalizações que colocam os servidores públicos como inimigos do restante da população. “‘Servidores’, o ‘setor público’ ou ‘funcionários do Estado’ formariam um grupo de marajás que arruinaria as finanças do País”, diz o texto. Mas as coisas se passam de modo diferente, e são mais complexas do que aparentam, conforme mostram os estudos sérios sobre o tema. A análise de Flávia Lima foi publicada na Folha no domingo, 30/8, e reproduzida no blog do Zé Beto.
Leia, abaixo, a íntegra da coluna da ombudsman da Folha de S. Paulo.
A ‘Geni’ da cobertura jornalística
Flavia Lima
No dia 25 de agosto, reportagem da Folha de S. Paulo apontou que servidores públicos no Brasil concentram 6 das 10 ocupações mais bem pagas do país. O subtítulo dizia que um ajuste abriria espaço no Orçamento. “Fala-se em servidores, mas, quando se vai ao texto, encontramos uma pequena casta do Judiciário e o pináculo do Executivo. É constrangedor”, disse um leitor. “Há uma longa discussão sobre o tema, e, sinceramente, concordo que há salários muito altos no serviço público tendo em vista a renda média do País. Mas essa discussão precisa ser mais bem qualificada”, afirmou outro.
Não é de hoje que o jornal aborda as distorções no universo dos servidores públicos relacionadas aos altos salários pagos, sobretudo na comparação com o setor privado. Muitas vezes, no entanto, escolhe uma abordagem simplista e acusatória do tema. “Servidores”, o “setor público” ou “funcionários do Estado” formariam um grupo de marajás que arruinaria as finanças do País. O mais curioso é que o estudo no qual se baseia a reportagem faz o oposto do que seria uma generalização. A partir de dados do IRPF (Imposto de Renda Pessoa Física) de 2018, o levantamento, feito pela FGV Social, consegue apontar com precisão que Ministério Público e membros do Poder Judiciário ficam com 3 das 5 ocupações mais bem pagas do país. Servidores federais, como diplomatas, além de funcionários do Banco Central e de auditores fiscais, figuram entre os 10 mais bem pagos.
De fato, supersalários não parecem razoáveis. E é por isso que os dados poderiam ter servido para uma discussão mais alentada tanto sobre onde, dentro do serviço público, se localizam esses supersalários (MP, Judiciário, serviço federal) como sobre o retorno que trazem para a sociedade, a fim de entender se se justificam. Comparar o funcionalismo do Brasil com o de outros países e procurar saber por que parece ser tão difícil mexer com esses interesses são caminhos para aprofundar a análise.
O texto, porém, esgota o achado—quem compõe, afinal de contas, o topo da pirâmide no serviço público— em um único parágrafo. No restante, parece defender agenda única: volta a tratar servidores públicos como uma massa uniforme, contrastando o peso da folha de salários estatal com a necessidade de controlar as contas públicas e de ampliar a ajuda aos mais vulneráveis no pós-pandemia. E reitera, sem ouvir voz divergente, que vantagens como estabilidade no cargo e salários mais altos justificariam a aplicação de mecanismos temporários de redução de 25% de remuneração e da correspondente jornada de trabalho em caso de descumprimento do limite de gastos públicos.
O raciocínio, com ares de revanche, parece ser este: se o setor privado foi sacrificado, por que não o setor público? Ocorre que, no setor privado, a proposta de redução dos salários feita em razão da pandemia foi acompanhada de uma compensação para salários mais baixos. Faria sentido propor um corte linear dos salários do serviço público? Como a redução da oferta de segurança pública, educação, saúde e pesquisa sobre o coronavírus atenderia o interesse público?
Essa discussão não foi feita. A necessidade de redução da folha de pagamentos do serviço público da União, dos estados e dos municípios parece ser um fim em si, sem que isso gere outras reflexões. O estudo revela que, dentro do Distrito Federal, unidade da Federação com a maior renda média mensal, o Lago Sul tem renda pelo menos três vezes maior do que a de municípios inteiros com maior renda. Ao mesmo tempo, indica também que, proporcionalmente, há mais pessoas ganhando salário mínimo entre os servidores municipais do país do que entre os empregados domésticos no setor privado—profissionais cujos salários, na média, são baixos.
Daí a imprecisão de qualquer frase que comece com “servidores no Brasil”. As generalizações serviriam a quem? Não aos leitores. Servidor público é uma categoria ampla que inclui de desembargadores a auxiliares de limpeza. Ter em mãos um raio-X da elite e perder a oportunidade de explorá-lo em nome de fustigar essa entidade abstrata (o “servidor público”) favorece ou o desmantelamento irrefletido, ou esse topo da pirâmide.
O debate em torno dos desafios da máquina pública, das muitas ineficiências, além dos supersalários e dos efeitos que eles têm sobre o orçamento público, tem muita relevância. A forma como essa discussão geralmente é feita pela imprensa, porém, deixa a desejar. A cobertura jornalística tem que identificar essas assimetrias não como forma de atingir indistintamente servidores públicos, mas com foco na melhora da qualidade dos serviços prestados à população. Aqui, o interesse não pode ser pura e simplesmente economizar. Do contrário, parece birra ou desinteresse de quem nunca usou o serviço.
Flavia Lima é repórter especializada em economia, formada em ciências sociais pela USP e em direito pelo Mackenzie. É ombudsman da Folha desde maio de 2019.