A morte do cartunista argentino Joaquín Salvador Lavado Tejón, o Quino, no dia 30 de setembro, é tema de homenagem assinada pelo consultor jurídico aposentado Célio Heitor Guimarães. O texto, com o título Muitas lágrimas por Quino, foi publicado originalmente no blog do Zé Beto, e também pode ser lido na seção Palavra Livre do site. Confira, abaixo, a íntegra do artigo.

 


Muitas lágrimas por Quino

Célio Heitor Guimarães

 

O mundo se tornou mais triste e muito mais desinteressante nesse 30 de setembro com a morte de Joaquín Salvador Lavado Tejón, o Quino, último gênio dos cartuns e das histórias-em-quadrinhos. Argentino de Mendonza, filho de espanhóis, ele era o pai da Mafalda, aquela menininha contestadora, preocupada com a paz mundial, fã dos Beatles, que odeia sopa e autoritarismo.

Quino estava com 88 anos e havia sofrido um AVC na semana anterior à sua morte. Já se locomovia por meio de cadeira de rodas em face de um problema circulatório nas pernas, além de sofrer de glaucoma, o que afetou seriamente a sua visão. Não obstante, o seu desaparecimento enluta todos os admiradores de um extraordinário talento que por mais de 50 anos nos presenteou com peças gráficas da maior criatividade.

Mafalda foi criada em 1962. A história é conhecida: um diretor de agência de publicidade queria uma personagem para uma campanha publicitária da empresa de eletrodomésticos Mansfiel. Ela deveria ter no nome as primeiras letras da firma. Quino criou Mafalda, mas a agência não aprovou a criação, que foi engavetada por dois anos. Aí, o extinto jornal Primera Plana pediu ao artista algo diferente. Ele apresentou-lhe a Mafalda. E então tudo começou.

Rechonchuda e tagarela, além de amar os Beatles e odiar sopa, Mafalda é o retrato da América Latina. E lidera uma turminha animada no bairro em que mora, em Buenos Aires: o sonhador Felipe, o futuro capitalista Manolito, a fútil Susanita, que sonha com um marido rico e uma porção de filhos; o egocêntrico Miguelito; o pequeno Guille; e a minúscula Libertad, de tamanho “compatível com o seu nome” na Argentina dos anos 70.

Tal qual o seu criador, Mafalda vive às voltas com o mundo pequeno-burguês, com uma sociedade de consumo, com a desigualdade social, com a televisão, com as guerras e a política, a velha e maldita política. Não entende o mundo adulto e recusa-se a fazer parte dele, ainda que o conheça melhor que o adultos e o veja caminhando para a autodestruição.

Como Mafalda, Quino se dizia um amargurado e um pessimista: “Sou alguém que dramatiza tudo, que pensa que as coisas vão sair sempre mal, que uma tragédia irá sempre acontecer…”. Ainda assim, ele valeu-se, corajosamente, de seu pequeno personagem para burlar a censura em sua Argentina dos anos de chumbo e tornou-a a sua “melhor aliada” para dizer “o que queria e quando queria”.

– Desde que cheguei a Buenos Aires, em 1954 – contava Quino -, me disseram que não podia fazer desenhos sobre militares, sobre a igreja, sobre o divórcio e sobre a moral. Então, me acostumei a desenhar as coisas que me permitiam.

Isso foi até Mafalda entrar em ação. No entanto, tímido e excessivamente modesto, Joaquín comparava-se a um carpinteiro e “Mafalda era um móvel que fez sucesso, lindo, mas que para mim continua sendo um móvel, que faço por amor à madeira em que trabalho”.

Pois o “móvel” que apareceu no Primera Plana e depois foi para El Mundo passou a ser publicado em livretos que se tornaram sucesso internacional. Quino deixou de publicar Mafalda em 1973, mas nem por isso ela deixou de existir, distrair e fazer o mundo pensar. Até hoje é editada e reeditada em mais de 50 países, num total de 20 línguas.

O artista dizia que deixou Mafalda por puro cansaço, após haver produzido 1.928 tirinhas da personagem. “Ela acabou se tornando um personagem opressivo, uma obrigação, e então deixou de ser divertido”, confessou à jornalista espanhola Maruja Torres, em uma entrevista inclusa na coletânea Toda Mafalda, editada no Brasil pela Martins Fontes e que reúne a totalidade das tiras.

Durante a ditadura militar argentina, o governo do país quis utilizar Mafalda em uma campanha na imprensa. Quino recusou, é claro. Dias depois, um grupo armado invadiu o departamento onde trabalhava. Ele e a esposa Alicia buscaram exílio em Milão, na Itália. O casal viveu entre Madri e Mendonza de 2009 até 2017. Alicia morreu em 2017. Desde então, Quino voltou a morar em sua terra natal, Mendonza, onde faleceu. O casal não teve filhos.

Em 2008, a cidade de Buenos Aires homenageou o artista, por iniciativa do Museu de Desenho e Ilustração, com dois murais de Mafalda no metrô da cidade, na estação Peru, ou seja na histórica Plaza de Mayo. O objetivo foi assegurar o conhecimento do trabalho de Quino pelas gerações futuras.

Em 2014, quando se completaram seus 60 anos no humor gráfico e os 50 anos de Mafalda, o cartunista foi galardoado pela França com a Ordem Oficial da Legião de Honra, a distinção mais importante do governo francês a estrangeiros. No mesmo ano, em Oviedo, norte da Espanha, Quino foi agraciado com o prêmio Príncipe das Astúrias, na categoria Comunicação e Humanidade. A láurea destina-se a homenagear o trabalho humanitário, técnico, científico e cultural realizado por indivíduos ou equipes.

Como bem disse ontem um jornalista portenho, “Quino morreu, mas Mafalda continua viva”.

Tanto Quino quanto Mafalda estão presentes no livro HQ – A arte que está no gibi, de autoria deste que vos digita e que deverá vir à luz nos próximos dias, com a supervisão técnica do mestre Ivan Piccolo Rodrigues, da Máxi Gráfica, e que ninguém verá porque serão pouquíssimos exemplares não comerciáveis.

EDIÇÃO  TAMBÉM  DEDICADA  À MEMÓRIA DE JOAQUIN SALVADOR LAVADO TEJÓN,  O QUINO, QUE FALECEU QUANDO O LIVRO JÁ ESTAVA PRONTO. (CHG)

 

Célio Heitor Guimarães é jornalista e consultor jurídico aposentado.

 

Acesse o artigo na seção Palavra Livre.