Até quem não costuma refletir sobre as desigualdades sociais do mundo ocidental percebe que algumas pessoas nascem em lares ricos e outras em lares pobres e concordam que isso acontece por mero acaso. Devem perceber também que ao nascer rico, a criança terá acesso a alimentação, vestuário, moradia, educação, atendimento médico e oportunidades melhores do que os nascidos pobres, fato que confere a ela uma vantagem inicial significativa quando ingressar no mundo real da luta pela sobrevivência e pelo exercício da cidadania. Esta vantagem, que nada tem a ver com o mérito ou valor do indivíduo, favorece muito a trajetória de vida do nascido rico em relação aos nascidos pobres e ninguém duvida disso.

É também o acaso que leva alguém nascer branco e outro negro, sendo que já a partir do nascimento ambos irão ter acesso a condições diferenciadas de sobrevivência, de desenvolvimento de suas potencialidades e de exercício da cidadania que tem como efeito incontestável a presença predominante de pessoas nos espaços de poder político e econômico e de pessoas negras nos espaços de pobreza e exclusão. Este efeito também tem muito a ver com as vantagens e desvantagens iniciais atribuídas pelo acaso e pouco com o mérito, capacidade, qualidades individuais, etc.

É oportuno trazer esta evidência no Dia da Consciência Negra, data na qual costumamos reverenciar as importantes contribuições negras na formação da nossa nacionalidade, denunciar as manifestações de discriminação racial e crimes de racismo e comemorar os avanços decorrentes de ações afirmativas e da luta constante pela redução das desigualdades.

Nos últimos anos, vem aumentando a consciência mais ampla sobre como as relações raciais influíram na configuração da sociedade brasileira do presente, sobre como esta sociedade se revela estruturalmente racista e o quanto é necessária a mobilização de toda a população para reduzir a influência do racismo na organização política e econômica do Brasil e do mundo ocidental.

A pandemia do coronavírus tem demonstrado que as condições de localização, moradia, emprego, renda e de acesso aos serviços públicos coloca a população negra nos graus mais elevados de suscetibilidade e vulnerabilidade ao vírus. As condições citadas implicam em maior dificuldade em praticar o isolamento social, o que acaba aumentando a circulação do vírus e contaminação.

Porém, já é possível perceber mudanças positivas e animadoras, fruto da mobilização nacional e internacional contra a desigualdade racial. O debate sobre o tema e sobre a representatividade da população negra tem ocupado espaços crescentes na mídia, o que certamente colaborou para dar mais visibilidade a profissionais negros das mais diversas áreas e até para aumentar a participação de candidatos negros no último pleito, inclusive, com a eleição de 32% de candidatos a prefeito que se autodeclaram negros. Também aumentou significativamente a presença negra nas Câmaras Municipais, como foi o caso da Câmara Municipal de Curitiba que contará com a primeira vereadora negra, Carol Dartora, e com os vereadores negros Herivelto Oliveira e Renato Freitas.

Positiva e animadora é a percepção de que atitudes antirracistas podem ser incorporadas às práticas cotidianas da empresa, do poder público e de qualquer cidadão, como ações efetivas de defesa e de promoção da democracia e como passos decisivos na direção do sonho de Martin Luther King.

 


Maria Aparecida Blanco de Lima, desembargadora, é ouvidora substituta do Tribunal de Justiça do Paraná