Polêmica no STF: prisão de traficante foi tema de debates na instância mais alta do Judiciário (foto: STF)
O prazo de 90 dias para revisar a manutenção de prisão preventiva, se descumprido, não implica sua revogação automática. O entendimento foi firmado pelo Supremo Tribunal Federal em julgamento no dia 15/10. O tema central do debate, mas que virou pano de fundo, foi a suspensão de liminar concedida pelo ministro Luiz Fux, que determinou que o traficante André Oliveira Macedo, o André do Rap, seja preso novamente.
A análise dos ministros pôde ser dividida em duas partes: a interpretação a ser dada do artigo 316 do Código de Processo Penal e a possibilidade de o presidente da Corte suspender decisão de um de seus pares. Acerca da interpretação do artigo 316 do CPP, cuja redação foi alterada pela lei “anticrime” (Lei 13.964/2019), os ministros fixaram uma tese. “A inobservância do prazo nonagesimal do artigo 316 do CPP não implica automática revogação da prisão preventiva, devendo o juiz competente ser instado a reavaliar a legalidade e a atualidade dos seus fundamentos.”
Ficou vencido o ministro Marco Aurélio, que entende que o Supremo estaria invadindo a competência do Poder Legislativo para tratar da matéria. Sobre a votação do referendo, a Corte já tinha maioria formada para manter a decisão de Fux — desde que ela fosse excepcionalíssima. Nesta quinta, somaram ao coro os ministros Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes. Foram feitas ressalvas quanto à abrangência e à necessidade de uniformização do entendimento sobre a competência do presidente da Corte para suspender decisão de outro ministro em matéria penal. Marco Aurélio também ficou vencido nesse tópico. Ele relatou o habeas corpus que determinou a soltura do réu, aplicando o entendimento literal da lei e apontando que havia constrangimento ilegal na manutenção da prisão preventiva, já que o acusado estava preso havia mais de 90 dias sem formação de culpa e sem renovação da fundamentação da prisão.
Distribuição problemática – Em seu voto, o ministro Gilmar Mendes destacou que Rosa Weber foi a relatora da operação que prendeu o traficante, de forma que ela ficaria preventa para julgar o HC, que foi distribuído aleatoriamente para Marco Aurélio. Para Gilmar, seria preciso reformar o regimento da Corte para evitar fraudes de distribuição do processo. O ministro disse que, no caso concreto, nem a Procuradoria-Geral da República “fica imune de críticas”, já que apresentou a impugnação apenas no sábado. “Somente no sábado, 10 de outubro de 2020, quando já havia sido cumprida a ordem de soltura, é que o parquet ajuizou o pedido de liminar em exame, no sábado, às 19h46. Isso só chegou no sábado! O HC foi dado na terça-feira. É um festival de erros, equívocos e omissões!”, afirmou Gilmar. Fux entendeu que há um equívoco nas distribuições e no sistema de prevenção. Para resolver o conflito, anunciou que publicará ainda hoje um ato da presidência para pacificar o tema.
Assimetria censora – Ficaram vencidos na análise preliminar sobre o cabimento da suspensão de liminar os ministros Lewandowski, Gilmar e Marco Aurélio. Lewandowski citou precedente de suspensão de liminar relatada pela ministra Cármen Lúcia que, quando na presidência da corte, negou seguimento ao recurso (suspensão de liminar nº 1.117), alegando que qualquer outro entendimento “viabilizaria a atuação do presidente deste Supremo Tribunal como espécie de revisor das medidas liminares proferidas pelos demais ministros, o que se apresenta inadequado, por comporem o mesmo órgão jurisdicional, não se havendo cogitar de hierarquia interna”. Cármen também lembrou do próprio precedente na suspensão de liminar, mas considerou que a decisão de Fux foi legítima com base em três critérios: “1) a excepcionalidade demonstrada; 2) a urgência qualificada; e 3) a motivação formalizada na decisão”.
Para Lewandowski, no entanto, o instrumento apropriado para questionar o HC de Marco Aurélio seria “o agravo regimental, cujo juiz natural, no caso, seria a 1ª Turma, e não o Plenário”. “O perigo de conceder-se uma tal discricionariedade aos dirigentes da Corte, permitindo que atuem em situações por eles próprios consideradas excepcionais, consiste no risco de que passem a cassar decisões de colegas com base em meras idiossincrasias pessoais ou quiçá movidos por algum viés político”, argumentou. Gilmar lembrou que ele próprio participou da redação da Lei 8.437, invocada por Fux para aceitar o recurso, e destacou que a interpretação do artigo 4º apresentada não se sustenta. “Ela nada teve a ver com o objeto que estamos a discutir. Ela teve a ver com a falta de um regime de contracautela para as situações em que não havia como pedir a suspensão, porque era sentença cautelar, e não medida liminar em mandado de segurança, e isso está na exposição de motivos da MP que foi convertida em lei.”
Mendes também destacou os riscos de adotar a interpretação de forma sistemática no Supremo. “Estamos em um tribunal cuja atividade precípua é a guarda da Constituição. E o incremento quantitativo e qualitativo da intervenção do Estado em matéria social acarreta que até o exercício rotineiro de nossa atividade jurisdicional importe em incursão em matérias de elevado impacto social e político. Logo, não demanda muito esforço de imaginação cogitar que, a valer a interpretação ensaiada nestes autos do artigo 4º da Lei 8.437, todo e qualquer interessado que tenha sofrido sucumbência em razão de decisão monocrática certamente baterá às portas da presidência”, alertou o ministro.
“Por tudo isso, cumpre consignar que, tomada por órgão jurisdicional absolutamente incompetente, a medida liminar não deixa de violar a ordem pública que promete proteger”, concluiu o ministro. Marco Aurélio, relator do HC original, também votou pelo não conhecimento da suspensão de liminar, tecendo duras críticas ao presidente Luiz Fux por ter, enquanto presidente da Corte, revogado decisão de um par. Ele afirmou que levará o pedido de habeas corpus original para o órgão colegiado correto para apreciação da decisão, que é a 1ª Turma, e não o Plenário. “Creio que o presidente é um coordenador de iguais, sendo responsável até mesmo por uma interação maior entre os membros do Tribunal, devendo ser, por isso mesmo, algodão entre cristais. Não pode atuar de forma trepidante, não pode ser, em relação a seus iguais, um censor, levando ao descrédito o próprio Judiciário”, afirmou o novo decano de STF.
Histórico do caso – No dia 2 de outubro, Marco Aurélio determinou a soltura de André do Rap. Em agosto, o ministro já tinha acatado outro pedido de habeas corpus de sua defesa, pelos mesmos motivos. Ele só não foi libertado porque havia outra condenação contra ele, a que foi alvo do novo pedido de HC. André foi solto na manhã de 10/10. À noite, Fux atendeu pedido da Procuradoria-Geral da República e o pedido de suspensão de liminar para que o acusado fosse preso novamente. Segundo o ministro, havia risco à ordem pública caso André fosse libertado.
As decisões trouxeram à tona um imbróglio de entendimentos. Para Marco Aurélio, a suspensão da liminar não podia ter sido feita como foi porque “descredita” a Corte. Segundo o ministro, Fux tentou responder aos anseios populares em uma “busca desenfreada por justiçamento”. “É a prática da autofagia, que só descredita o Supremo”, disse. “Evidentemente, ele não tem esse poder, mas, como os tempos são estranhos, tudo é possível”, complementou o ministro. “Disse-o bem o ministro Gilmar, na última sessão, repetindo minha fala na posse: ele é coordenador de iguais e não superior hierárquico”.