Constituição da República: o elo que nos une. Trinta e dois anos de estabilidade democrática, o maior período da história republicana do Brasil, eis o principal legado da Constituição que aniversaria neste 5 de outubro. Ela apresenta um verdadeiro projeto de nação, conjugando os valores sociais do trabalho e a livre iniciativa, tornando o brasileiro centro gravitacional do Estado.
Em 5 de outubro de 1988, o presidente da Assembleia Nacional Constituinte, Ulysses Guimarães, em sessão solene e histórica do Congresso, proferia seu célebre discurso ao promulgar a Constituição da República Federativa do Brasil. “A Constituição certamente não é perfeita”, dizia ele, porém asseverava com firmeza: “Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca”. “Traidor da Constituição é traidor da pátria. […] Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo. Amaldiçoamos a tirania onde quer que ela desgrace homens e nações. Principalmente na América Latina”.
O processo constituinte, iniciado em 1987, apresentou-se como uma grande oportunidade histórica de se construir um projeto de nação democrático e plural, com vistas a consolidar a redemocratização do país após décadas de regime militar. A promulgação da Constituição Federal é um marco na história política e constitucional brasileira: no âmbito político, ela consolida a transição do regime militar para o regime democrático e, no âmbito jurídico, é a Carta mais abrangente de nossa história em termos de direitos e garantias fundamentais.
A ampla participação dos mais variados setores da sociedade civil — sindicatos, comunidades indígenas, movimento negro, mulheres, associações de empregados domésticos, grupos rurais, entre outros — possibilitou que a Constituição Cidadã tivesse essa natureza democrática e diversa que lhe é característica.
Promulgada no ano centenário da abolição da escravatura no Brasil, a Constituição de 1988 contou com fundamental contribuição dos movimentos negro e indígena. Foi, sobretudo, a partir dessas interferências que, logo em seu artigo 3º, a Carta prevê objetivos fundamentais que exigem programas sociais e políticas públicas, não deixando a efetivação de princípios tão caros como a igualdade tão somente a cargo da discricionariedade dos poderes Executivo e Legislativo.
Entre os objetivos fundamentais da República, consagrados pela Carta Cidadã, encontram-se a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a garantia do desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza e da marginalização e a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Os objetivos fundamentais são um elemento do que o eminente constitucionalista português José Gomes Canotilho consagrou como “Constituição dirigente”. São normas que apontam para o futuro, para um tipo de sociedade que ainda não é no presente, mas que, pela vontade do povo, manifestada pelo poder constituinte, deseja-se construir. São características de constituições promulgadas logo após a derrocada de regimes autoritários, como a Constituição Portuguesa de 1976 e a própria Constituição Brasileira de 1988. Essas Cartas possuem normas com forte caráter programático, assentando valores profundamente democráticos e igualitários.
Embora tenha sido alvo de críticas, os ensinamentos do professor catedrático da Universidade de Coimbra foram fundamentais para a construção de uma ideia de vinculação das normas constitucionais e de sua força normativa, opondo-se à noção de que essas normas seriam meramente programas ou conselhos ao legislador, sem vinculatividade estrita.
A proteção da dignidade da pessoa humana, da liberdade e dos bens dos cidadãos, é feita com a exigência das garantias do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório. O advogado, profissional do cidadão, é reconhecido como função essencial à Justiça, sendo indispensável e inviolável no exercício da profissão. A Constituição reconhece que o Estado democrático de Direito pressupõe advogado valorizado para que tenhamos cidadão respeitado. O advogado é, portanto, o profissional que a protege de forma mais direta e efetiva.
Observando a realidade social, não se deixando incorrer no apego ao próprio texto, importa reconhecer a existência de uma lacuna, muitas vezes abissal, entre o “ideal” da norma e o “real” da vida em sociedade, já que para efetivação das normas constitucionais o Direito, a política e a economia devem se articular mutuamente e nem sempre isso acontece. Esse vácuo entre o normatizado e o efetivado tem resultado num crescimento exponencial das demandas levadas ao Poder Judiciário, sobretudo no chamado controle judicial de políticas públicas, mas também para dirimir conflitos em geral no tocante à separação de poderes.
Os fenômenos da judicialização da política e do ativismo judicial são, certamente, uma marca desses 32 anos de Constituição da República. É natural que uma constituição analítica com um texto demasiadamente abrangente nas matérias que regula e dotada de um extenso rol de direitos e garantias fundamentais, ao ser descumprida ou ameaçada, provoque uma sobrecarga e muitas vezes expectativas superestimadas em relação ao Poder Judiciário, como a panaceia dos déficits democráticos e de direitos do país.
A relevância da Corte Constitucional brasileira é inquestionável, seja em sua atuação contramajoritária, na tutela de direitos e garantias fundamentais, mesmo contra maiorias políticas de ocasião, seja em seu papel de estabilização dos conflitos federativos e na harmonização das competências dos entes federados.
Contudo, há de se destacar a elevada complexidade e diversidade das matérias que têm sido levadas à apreciação do Supremo Tribunal, que possui, por sua própria natureza e posição no arranjo institucional, capacidades institucionais limitadas para dirimir questões que envolvam assuntos que perpassam por economia, cultura, biotecnologia, orçamento público, meio ambiente, entre tantos outros.
Daí porque se faz relevante, nessa quadra histórica, rememorar as lições de Peter Häberle [1] quando afirma que as Cortes Constitucionais não detêm a exclusividade sobre a interpretação constitucional; há o que ele chama de sociedade aberta dos intérpretes. Essa interpretação é compartilhada pela sociedade civil organizada, pelas instituições — governamentais ou não — e por todos os cidadãos. Por isso tão relevante é a ampliação democrática da Justiça, por exemplo, com a figura dos amici curiae, que conferem maior permeabilidade e oxigenação à jurisdição constitucional.
Contudo, ao mirar a Constituição de 1988 e o caminho percorrido pela sociedade brasileira até o presente momento, o maior erro que se comete é acreditar que, uma vez promulgada a Carta Cidadã, os direitos e garantias fundamentais, bem como o regime democrático estariam consolidados e assegurados de uma vez por todas, sepultado qualquer resquício de autoritarismo ou sectarismo.
Michel Rosenfeld, constitucionalista norte-americano, em sua marcante obra “A identidade do sujeito constitucional [2]”, consagra a ideia de que a identidade desse sujeito é sempre aberta e passível de reconstruções. A cada inclusão de um direito ou de um grupo, novas exclusões se produzem ou se revelam, de modo que a Constituição não é estática, mas, sim, um construto dinâmico. É da sua natureza, ao mesmo tempo em que fornece estabilidade às relações políticas e sociais, ser dotada de tal permeabilidade e flexibilidade que possibilite a inclusão de novas demandas, e, por conseguinte, de novos direitos, o que pode se dar por modificações em seu texto, mas frequentemente acontece por meio da hermenêutica constitucional, quando a sua interpretação evolui para adequá-la à contemporaneidade.
Portanto, embora muitas garantias fundamentais tenham sido consolidadas ao longo da vigência da Carta de 1988, deve-se ter em mente que esse é um processo dinâmico e evolutivo, que não tem fim. E mais: de que não se trata apenas de consolidar a Constituição, mas de conformá-la aos novos tempos. O rol de direitos ali insculpidos não está dado e encerrado, está em constante (re)construção.
Embora essa afirmação pareça carregar um alto grau de abstração, é, na realidade, bastante concreta na história constitucional recente brasileira. Basta lembrar de julgamentos recentes do Supremo Tribunal Federal como o que reconheceu às pessoas trans o direito de alteração do registro civil, diretamente pela via administrativa, independentemente da realização de procedimento cirúrgico [3], o reconhecimento da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) como entidade de classe legitimada à provocação da jurisdição constitucional [4] e da afirmação da existência de um direito à autodeterminação informativa no ordenamento constitucional [5], entre tantos outros.
Essa última decisão mencionada é explícita ao afirmar a necessidade de se reconhecer novos direitos em decorrência das mudanças políticas, sociais e econômicas. A relatora, ministra Rosa Weber, assim asseverou, ao versar sobre o direito à privacidade dos dados pessoais, objeto da ação ali apreciada:
No clássico artigo The Right to Privacy, escrito a quatro mãos pelos juízes da Suprema Corte dos Estados Unidos Samuel D. Warren e Louis D. Brandeis, já se reconhecia que as mudanças políticas, sociais e econômicas demandam incessantemente o reconhecimento de novos direitos, razão pela qual necessário, de tempos em tempos, redefinir a exata natureza e extensão da proteção à privacidade do indivíduo.
De outro lado, como demonstração de que não temos um rol de direitos completo, que se esgota no próprio texto constitucional, veja-se que na redação original do parágrafo único do artigo 7º, a Carta de 1988 restringiu significativamente os direitos conferidos à categoria das empregadas domésticas, conferindo a essa profissão — composta majoritariamente por mulheres negras — apenas nove dos 34 direitos trabalhistas consagrados aos trabalhadores urbanos e rurais [6]. Essa grave violação de direitos somente foi superada com a Emenda Constitucional nº 72/2013, regulamentada pela Lei Complementar nº 150/2015, finalmente equiparou os direitos das trabalhadoras domésticas aos dos demais trabalhadores urbanos e rurais.
Outro exemplo está relacionado aos direitos das comunidades quilombolas. Enquanto os povos indígenas tiveram seus direitos à posse de suas terras garantidos — ao menos formalmente — desde a Constituição de 1934, foi apenas na Constituição de 1988 que o Estado reconheceu esses direitos aos quilombolas [7].
“A afirmação dos quilombos enquanto sujeitos constitucionais é resultado da densa disputa que o movimento negro realizou com a esfera pública” [8]. Trinta e dois anos depois, mesmo as comunidades quilombolas tendo experiências ativas de luta por direitos, a política de discriminação, apagamento e silenciamento persiste, mormente, na forma do racismo e da inefetividade de seus direitos.
Em última instância, defender a Constituição é garantir o primado do Direito sobre o arbítrio, da dignidade humana sobre a barbárie, a salvaguarda da democracia contra o autoritarismo. Pretender, de qualquer forma, reduzir ou esvaziar a Carta Constitucional significa pôr em risco as garantias e direitos fundamentais historicamente conquistados pelos cidadãos brasileiros.
Como já lembrava o poeta Drummond: “Os lírios não nascem das leis”. A Constituição e o Estado democrático de Direito são o resultado de nossas ações, enquanto sociedade e enquanto instituições que construímos e preservamos — dia a dia. Por isso, 32 anos depois, segue sendo atual o recado de Ulysses Guimarães sobre a Constituição: “Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais”.
[1] HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição. Contribuição para a interpretação pluralista e ‘procedimental’ da Constituição. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2002.
[2] ROSENFELD, Michel. A identidade do sujeito constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003.
[3] RE 670422.
[4] ADPF 709.
[5] ADI 6387.
[6] LOPES, Juliana Araújo. 2020. Constitucionalismo brasileiro em pretuguês: trabalhadoras domésticas e lutas por direitos. Dissertação. Linha de Pesquisa 2 – Constituição e Democracia, Universidade de Brasília. p. 37.
[7] CF/1988. Atos das Disposições Constitucionais Transitórias. Art. 68. Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.
[8] GOMES. Rodrigo Portela. 2019. Constitucionalismo e quilombos: famílias negras no enfrentamento ao racismo de Estado. Rio de Janeiro: Lumen Juris. Págs. 199-200.
Marcus Vinicius Furtado Coêlho é advogado, doutor em Direito pela Universidade de Salamanca (Espanha) e ex-presidente do Conselho Federal da OAB.