Foto: mulher quilombola de Barcarena (PA) – Cícero Pedrosa Neto (Amazônia Real)

 

O Brasil é o segundo país em número de casos de Covid-19 no mundo, atrás apenas dos EUA. Na primeira semana de agosto já eram mais de dois milhões de infectados confirmados, e foi ultrapassada a marca de 100 mil mortos. A maioria dos mortos é de pretos e pardos. Na região norte, em particular no Pará, o número de casos nas comunidades quilombolas tem crescido rapidamente. Em função das grandes distâncias das principais cidades, dificuldades de acesso, que algumas vezes é possível apenas por via fluvial ou aérea, da crônica falta de infraestrutura de saúde nas localidades e nas prefeituras menores, que se soma à ausência de políticas de Estado para os quilombolas, não há perspectiva de que a situação venha a ser controlada no curto prazo.

O Pará é o estado que tem o maior número de áreas quilombolas tituladas no país. São 141 títulos coletivos, abrangendo mais de seis mil famílias em 64 municípios. Segundo as organizações quilombolas, até a segunda semana de agosto já havia 1779 casos de Covid-19 confirmados, 1171 suspeitos sem acompanhamento médico e 43 óbitos nas diversas regiões do estado, que tem mais de 500 comunidades auto-identificadas e concentra cerca de um terço das mortes de quilombolas do país. Naturalmente que, como não há testagem adequada ou suficiente nas áreas rurais, o número de casos de contaminação e potencialmente mortes não notificados no interior é incalculável.

No Brasil, as pessoas negras internadas com Covid-19 têm quase o dobro de chances de morrer quando comparadas com as brancas. Porém, muitos quilombolas têm morrido sem sequer ter a oportunidade de chegar aos hospitais, e não há nenhum sistema de registro oficial para esse grupo nos formulários de notificação, o que torna qualquer análise numérica especulativa.

Segundo o Instituto Socioambiental (ISA), o Pará é o estado que apresenta o maior número de mortos entre os quilombolas. No Brasil, já são mais de 150 e a taxa de letalidade estimada entre eles até junho era quase cinco vezes maior do que a média brasileira. Embora certamente subestimados, devido à falta de testagem, esses dados mostram o crescimento vertiginoso dos casos entre os grupos mais vulnerabilizados e a interiorização da pandemia, afetando as áreas que já são historicamente precárias em termos de assistência à saúde. Em geral, as populações do Norte e do Nordeste apresentam os piores indicadores sociossanitários.

Como forma de tentar se proteger, muitas comunidades têm realizado barreiras sanitárias voluntárias, na perspectiva de impedir a entrada de visitantes e seguir normas de isolamento para quem vai buscar alimentos, medicamentos, ou levar parentes para os hospitais. Mas isso traz implicações. Considerando que a atenção básica em saúde sempre foi precária nessas comunidades e há um elevado número de pessoas com doenças crônicas, necessitando de acompanhamento médico regular e medicações, que não estão disponíveis nas comunidades, as taxas de mortalidade nesses grupos deverão aumentar, especialmente entre os idosos, que são os principais depositários das tradições de cada comunidade.

Em todo o país, os quilombolas dependem sobretudo da agricultura, da pesca e de auxílios governamentais para sobreviver. Sem poder sair para vender seus produtos, muitas comunidades estão sofrendo com insegurança alimentar e nutricional e estão apelando para vaquinhas na internet, feitas com apoio de ONGs, associações quilombolas, pesquisadores, ativistas e estudantes na capital, para a aquisição de cestas básicas e kits de higiene para distribuição entre as famílias necessitadas, já que grande parte não teve acesso ao auxílio emergencial do governo federal. Em diversas áreas não há eletricidade, nem acesso à internet, muitas pessoas não têm telefone, identidade, CPF e/ou são analfabetas e não conseguiram sequer fazer o cadastro. Outros quilombolas, quando conseguem se cadastrar não conseguem se deslocar até a cidade para acessar os recursos por falta de transporte, de dinheiro ou medo de trazer o contágio para a comunidade na volta.

O país não conta com qualquer estrutura oficial de registro sobre a situação das populações quilombolas e o Censo Demográfico de 2020, que seria o primeiro na história a buscar informações para identificá-las, não será realizado devido à pandemia. Porém, pesquisas realizadas em vários estados mostram que a saúde desses grupos já é historicamente fragilizada em função de sua situação socioeconômica e do histórico racismo ambiental, estrutural e institucional. De modo geral, quando se trata de indicadores de saúde, saneamento e educação, os quilombolas estão apenas um pouco melhor que os indígenas.

No cenário nacional, a Fundação Cultural Palmares, que deveria liderar os esforços para a proteção das comunidades quilombolas, demite servidores e se vê imersa em controvérsias e litigações, pois seus dirigentes se posicionam, com frequência, contrários aos movimentos sociais e suas agendas em defesa da população negra. O Ministério da Saúde demorou até abril para implementar o quesito raça/cor nas fichas de notificação de Covid-19, só vindo a fazê-lo após ser pressionado pelas organizações do Movimento Negro e até agora não há diretriz oficial específica sobre o combate à pandemia nas populações quilombolas.

Enquanto isso, o coronavírus avança a passos largos para o interior da Amazônia e do Brasil. Acostumadas a lidar com a ausência e a necropolítica do Estado, as comunidades recorrem às suas tradições culturais históricas, sua religiosidade, seus conhecimentos etnobiológicos, sua solidariedade mútua e sua resiliência, para continuar a suportar o racismo estatal e mais essa “doença de branco”.

 

Hilton P. Silva é docente do Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGA) e do Programa de Pós-Graduação em Saúde, Ambiente e Sociedade na Amazônia (PPGSAS) da Universidade Federal do Pará (UFPA), Coordenador do Laboratório de Estudos Bioantropológicos em Saúde e Meio Ambiente (LEBIOS) e Pesquisador Colaborador do Centro de Investigação em Antropologia e Saúde (CIAS), Universidade de Coimbra (UC), Portugal.