Os desafios da contemporaneidade e os reflexos da crise provocada pelo coronavírus são temas abordados numa breve reflexão de Renato Bonfatti, professor do Centro de Estudos de
Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana da Fiocruz. O texto adota como inspiração o poema Ponto de vista, escrito pelo autor nos anos 1990, e conclui: “[…] Haja o que houver, mesmo que tudo nas aparências nos leve a crer num eminente desastre, sei que este mundo é muito mais complexo, mais misterioso e cheio de possibilidades do que supõe a nossa vã filosofia, e que um futuro melhor se semeia num aqui e agora de compromisso e lutas”.

 

Confira, abaixo, a íntegra do texto.

Joan Miró – A esperança de condenado à morte III

 


Ponto de vista

Renato Bonfatti

 

Tem os que rodam por aí
semeando engano
tem os que pintam
a sujeira de dourado
tem os que tateiam no escuro
os que vivem em cima do muro
tem os que sufocam
tem os que embarcam
os que matam
Dizem que vem por aí um vento
mudando o lugar de todos os grãos
e que o tempo, como um grande manto
vai encobrir as esperanças
mas tem também os que semeiam danças
e é junto desses que eu quero estar

 

Um amigo me perguntou se eu havia escrito esse poema [Ponto de vista] por conta da pandemia do coronavírus. Na verdade, não me lembro bem da época em que o escrevi. Penso que foi nos anos noventa. Tínhamos então como presidente da República o Fernando Henrique Cardoso, o segundo diretamente eleito após vinte anos de ditadura. Seu plano de
governo era muito semelhante ao do outro Fernando que o antecedeu, o Collor. A diferença estava no fato de que o Fernando Henrique veio com uma reputação de respeitabilidade: professor universitário e político experiente, honesto, e, principalmente, reconhecido como administrador competente desde seu sucesso como mentor do Plano Real, que baixou a inflação e produziu uma razoável estabilidade na economia. Na verdade, o Plano Real era parte de um projeto nitidamente neoliberal, recomendando um mínimo de Estado e um máximo de mercado. Desse modo, foi dada continuidade ao desmonte do Estado brasileiro iniciado no governo Collor com as privatizações e a política dita de “austeridade”, imposta pelo FMI. Essa política preconizava, entre outras coisas, aumento dos juros e drástica redução dos gastos públicos. Leia-se: cortes no orçamento com educação e saúde públicas e ataque aos funcionários públicos, colocados mais uma vez como uma espécie de “bode expiatório”, com suspensão de concursos e contenção de salários.

Impressiona, aliás, o modo recorrente como os governos neoliberais demonizam o funcionalismo público. Tal como hoje, quando o ministro da Economia utiliza a palavra “parasita” ao se referir aos funcionários públicos, Fernando Henrique na Presidência da República usou o termo “vagabundo” ao referir-se aos aposentados. Responsabiliza-se o funcionalismo público e os aposentados pelas crises, mas não se toca nas reais causas do problema. Sim, culpa-se esse mesmo funcionalismo, que hoje está dando literalmente a vida nas linhas de frente no combate à pandemia através do SUS, mas nada se menciona, por exemplo, sobre os exorbitantes lucros dos bancos nem sobre a possibilidade de taxação das grandes fortunas.

Essas grandes fortunas são a prova viva e exposta da terrível desigualdade social em que vivemos. Em 2017, o Brasil possuía cinco bilionários com patrimônio equivalente à metade mais pobre da população brasileira. Lembro-me de que na época em que escrevi o poema a  economia apresentava índices pífios de crescimento, enquanto aumentavam a miséria, a violência e a corrupção em todos os níveis. O país patinava e a falta de perspectivas infundia um estado de espírito de pessimismo cinzento nos seus cidadãos, pois era lícito pensar que, a continuarem as coisas do mesmo jeito, um futuro sombrio se avizinhava. Muita gente saiu do país nessa época, a buscar alternativas de vida com maior qualidade em outros lugares, porque é mesmo muito difícil viver num contexto em que só vemos as coisas piorarem dia após dia, dormindo e acordando sem perspectivas de um futuro promissor.

É muito duro ter que viver uma vida desencantada! E foi assim, nesse contexto, em meio a esse estado de espírito cinzento, que um dia parei para refletir e concluí que, haja o que houver, mesmo que tudo nas aparências nos leve a crer num eminente desastre, sei que este mundo é muito mais complexo, mais misterioso e cheio de possibilidades do que supõe a nossa vã filosofia, e que um futuro melhor se semeia num aqui e agora de compromisso e lutas. Jamais imaginei que as coisas pudessem piorar tanto, principalmente para nós brasileiros que nos vemos agora em meio a uma pandemia e imersos numa crise política com sérias ameaças à nossa democracia. Mas neste momento, tanto quanto nos “anos fernandos”, quando escrevi o poema, continuo abraçando o mesmo ponto de vista e me colocando ao lado daqueles que “semeiam danças” em suas lutas diárias. É junto deles que eu quero estar!

 

Renato Bonfatti é médico, filósofo, doutor em Ergonomia e professor do Centro de Estudos de Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana (Fiocruz).

 


Publicado em 12/5/2020, originalmente na coluna Opinião, do Fórum Intersindical SaúdeTrabalho-Direito. <https://48209fd4-9e54-4385-b712c09bfc7c2b87.filesusr.com/ugd/15557d_3b2978ac86484f3e93971259cfb41bbe.pdf>.