Protestos nos EUA: violência policial contra população negra gerou revolta em várias cidades norte-americanas

 

“Não consigo respirar”. Essas foram as últimas palavras de George Floyd, que morreu com um policial ajoelhado no seu pescoço em Minneapolis, Minnesota, nos Estados Unidos. João Pedro Mattos, uma criança de 14 anos, morreu em uma ação policial dentro de sua própria casa, em circunstâncias ainda não esclarecidas, no Morro do Salgueiro, em São Gonçalo, na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. A morte de Floyd serviu de estopim para uma série de protestos pelos Estados Unidos e, no Brasil, a morte de João Pedro mobilizou mais de 800 entidades da sociedade. Os dois foram vítimas da violência estatal e da sociedade, que ainda não superaram o racismo colonial e não medem as consequências dos seus atos, exercitando um arbítrio muitas vezes acobertado por leis tolerantes que protegem o agente da violência de responder pelo excesso cometido. Ocorre que ambos foram vítimas da intolerância, do medo e de um Estado que não esconde o culto à violência. Tudo alimentado pelas expressões de ódio e notícias falsas que permeiam o nosso dia a dia.

O fato é que vivemos tempos de intolerância. Neste fim de semana, circularam diversos manifestos questionando a propagação impune de um discurso de ódio, não só pelas redes sociais, mas também em diversas demonstrações públicas. Na frente do Supremo Tribunal Federal houve caricatural manifestação denominada de “300”, que copia de forma farsesca o filme ficcional (não o fato histórico) do enfrentamento dos persas pelos espartanos na Batalha das Termópilas, no século V a.C. O objeto do ódio pode mudar, mas na essência é o mesmo: tudo e todos que representam o oposto ao desejo de determinados grupos, sejam judeus, negros, militantes de correntes políticas, até ministros do Supremo Tribunal Federal ou membros do Congresso Nacional. É o puro exercício do ressentimento e do ódio.

Diversos países adotam restrições à expressão que promove o ódio. A Comunidade Europeia impõe fortes restrições às expressões xenofóbicas, não sendo protegidas pelo artigo 10º da Convenção Europeia. No Brasil, a nossa Constituição Federal garante a liberdade de expressão, vedado o anonimato (artigo 5º, inciso IV), mas igualmente “é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem” (artigo 5º, inciso V). O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, deu nova configuração constitucional, em 2003, ao crime de racismo no julgamento do Habeas Corpus 82424, apresentado em benefício de Siegfried Ellwanger. Basicamente, entendeu, no magistral voto condutor do saudoso ministro Mauricio Correa, que o racismo não é um fenômeno apurado por padrões genéticos, mas culturais e, portanto, a prática do crime ocorreu quando Siegfried Ellwanger editou e fez distribuir livros que negavam o holocausto e defendiam o antissemitismo, como foi noticiado em 10 de setembro de 2004. Da mesma forma, em 2019, o Supremo Tribunal Federal deu um passo a mais em favor do combate aos crimes de ódio ao estender a mesma premissa dos crimes de racismo aos casos de homofobia e transfobia no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26, de relatoria do ministro Celso de Mello, e do Mandado de Injunção (MI) 4733, da relatoria do ministro Edson Fachin.

Os Estados Unidos são um dos países em que a liberdade de expressão adquiriu estatuto e proteção superiores. A proteção à expressão é um dos fundamentos básicos do sistema americano e é base de admiração, mesmo para aqueles que criticam o sistema político que lá existe. Lembro-me do saudoso Adelmo Genro Filho, jornalista por profissão, filósofo por coração, que, questionado sobre eventual necessidade de sair do Brasil, se iria para os Estados Unidos ou para a União Soviética, respondeu que certamente para os Estados Unidos, pois lá ele poderia continuar sendo comunista. É bom que se diga aqui que Adelmo sempre foi um severo crítico do regime soviético, como de resto, de todos os regimes totalitários.

Entende-se que o direito de expressão nos Estados Unidos é amplo, abrangendo palavras, gestos, condutas, escrita etc. Até a liberdade de exercitar apoio político, mediante apoio financeiro, é abrangida pela liberdade de expressão, sendo qualquer restrição a ela proibida pela Constituição Americana (como deixou claro a Suprema Corte Americana em 2010 no caso Citizens United v. Federal Election Commission, 558 U.S. 310). Todavia, mesmo em uma democracia como a americana, em que o discurso do ódio guarda uma certa tolerância, ele não é admissível quando produz iminente violência. (R.A.V. v. City of St. Paul, 505 U.S. 377 – 1992). A premissa considerada é de que não se pode proteger a liberdade de expressão de alguém que grita “fogo” dentro de um cinema, já que o propósito de tal declaração é o de incitar pânico e violência, e não uma ideia a ser livremente expressa. Essa tolerância com discursos de ódio (hate speech), garantida na Suprema Corte dos Estados Unidos, não é sem consequências: conforme os relatórios do FBI demonstram, os crime de ódio que ocorrem naquele país têm crescido ano a ano, com um aumento de 17% em 2017, na comparação com 2016 (https://ucr.fbi.gov/hate-crime/2018/topic-pages/incidents-and-offenses).

Portanto, criminalizar o discurso do ódio e o seu instrumento principal, as fake news, não é uma violação da liberdade de expressão, mas um instrumento para preservar o sistema democrático. É a forma de garantir que a democracia e a justiça prevaleçam em uma sociedade que convive com uma intolerância e um ressentimento que disseminam o conflito e a violência. Não podemos deixar a democracia brasileira morrer gritando “não consigo respirar”.

 


Luís Inácio Adams é advogado e ex-procurador da Fazenda Nacional.