Sabotagem. A palavra que importamos em fins do século 19 do francês “sabotage”, neta de “sabot”, tamanco, entrou na moda enquanto eu estava de férias. Uma série de desdobramentos semânticos conduziu do calçado tosco de madeira usado por camponeses (acepção surgida no século 16) à ação maliciosa que provoca o fracasso de uma empreitada (da virada entre os séculos 19 e 20). No coração dessa família de palavras está a ideia de coisa feita grosseiramente, como um tamanco. O português traduziu isso no lusitaníssimo adjetivo atamancado, isto é, “feito às pressas e sem cuidado” (Houaiss).
Antes que os bem calçados leitores subam nas tamancas para dizer que essa história de “sabot” está confusa, convém tentar um resumo, ainda que atamancado. O sentido de serviço malfeito por incompetência acabou se expandindo para o de serviço malfeito de propósito. Pronto: eis a sabotagem como ato intencionalmente danoso a alguma atividade, única acepção que nossa língua importou.
A estratégia de atribuir seus fracassos, sem um fiapo de evidência, a intervenções imaginárias de inimigos políticos é comum no campo da nova direita brasileira. O Greenpeace foi acusado de derramar óleo nas praias e os brigadistas de Alter do Chão acabaram presos como incendiários.
No entanto, o truque nunca ficou tão batido quanto neste jovem 2020. Primeiro lançou-se a suspeita de que um funcionário sabotador fosse o responsável pela performance nazista do ex-secretário de Cultura Roberto Alvim, nosso Go-Go-Goebbels. A tese da sabotagem foi logo sabotada pelo próprio Alvim, zeloso de seus créditos como criador de um dos momentos mais bizarros da história do Brasil. O autor do vídeo abominável era ele mesmo, disse o secretário recém-demitido, ainda que, para não fugir ao tema, tenha declarado suspeitar de uma sabotagem do Príncipe das Trevas em pessoa. “Estou orando sem parar, e começo a desconfiar não de uma ação humana, mas de uma ação satânica em toda essa horrível história”, escreveu. O Rabudo sempre teve fama de sabotador, não é verdade?
Poucos dias depois era o governador fluminense, Wilson Witzel (PSC), quem recorria à suspeita de sabotagem para justificar a água podre da Cedae, antecipando-se a movimento semelhante do presidente da República diante do desastre do Enem 2019.
Mas quem cai nessa conversa? Muita gente, pelo visto, para não falar de quem, sem se convencer de todo, empaca em dúvidas no fogo cruzado de versões. Na nova forma de populismo parido pelas redes sociais, isso dá e sobra como areia nos olhos. E assim a sabotagem, que veio do tamanco, vai adquirindo no século 21 uma nova acepção, ainda não dicionarizada: “versão adolescente da desculpa infantil do cachorro que comeu o dever de casa”. As palavras nunca param de inventar moda.
A mesma inquietude que as torna tão travessas se manifesta no hábito que elas têm de dizer mais do que estava nos planos de quem as emprega. Ninguém precisa ser “de esquerda” para conceber uma visão de mundo em que Alvim sabotou a cultura, Abraham Weintraub sabota a educação, Ricardo Salles sabota o meio ambiente, Ernesto Araújo sabota as relações internacionais, Sergio Moro sabota o Estado de Direito e Bolsonaro sabota a democracia.
Sabotagem, pois é: no fim das contas, temos uma forte candidata a palavra-síntese do momento brasileiro. E o pior é que nossos sabotadores são do tipo atamancado.
Sérgio Rodrigues é escritor.