A PEC 6/2019, da reforma da Previdência, cujo texto básico foi votado pela Câmara dos Deputados e encaminhado ao Senado Federal, onde será apreciado em agosto, contém dispositivos que retiram garantias ade trabalhadores do setor privado e da administração pública. Para os técnicos do governo, as alterações contidas no projeto são fundamentais para o equilíbrio do sistema e para a eliminação de desigualdades que beneficiariam os “mais ricos”. Estudo feito juiz federal Marcelo Adriano Micheloti, de Santa Catarina, porém, mostra outra realidade: a reforma prejudicará os mais pobres.
A íntegra do artigo, publicado originalmente na revista Consultor Jurídico (22/7), é reproduzida abaixo.
Tópicos objetivos sobre a reforma da Previdência proposta pelo governo
De início, um esclarecimento: nas referências ao regime dos militares, bem como aos benefícios pagos aos trabalhadores rurais e às pessoas idosas e deficientes (BPC/Loas), utilizou-se unicamente do critério financeiro. Evidentemente, não é a única nem a melhor forma de análise, pois se deve atentar principalmente para o aspecto da atratividade, o que envolve saber quais Forças Armadas/segurança pública queremos para o país, qual a condição de vida que merecem os pequenos trabalhadores rurais e as pessoas desprovidas do mínimo existencial.
Propositadamente ,não é feita conclusão, pois a finalidade é que cada um possa ter a sua após a leitura e reflexão.
1. É sustentável o discurso do governo?
O governo adotou discurso de que a reforma é essencial para a retomada do crescimento do país. E que ela tem três pilares: combate às fraudes; efetividade na cobrança; e equidade no tratamento dos contribuintes/beneficiários (“combate a privilégios”).
1.1. Fraudes
A MP 871/2019, convertida na Lei 13.846/2019, foi editada com o discurso de “combater fraudes” na concessão/manutenção de benefícios previdenciários. Analisando o texto, observa-se: é desnecessária, porque a revisão de benefícios sempre foi possível, sem qualquer impedimento legal; aumenta o gasto público, pois criou gratificação para atuação dos servidores do INSS; o combate ao ilícito se faz principalmente com pessoal qualificado e utilização de meios modernos de investigação.
1.2. Cobrança
Novamente, o que se precisa é de investimento em pessoal e mecanismos adequados. A dívida previdenciária ultrapassa R$ 490 bilhões, sendo afirmado que apenas R$ 160 bilhões são recuperáveis.
Os devedores contumazes de tributos deixam de recolher anualmente entre R$ 30 bilhões e R$ 40 bilhões. Muito provavelmente à espera de um futuro Refis. Estudo mostra que o Refis acaba trazendo, ao final, redução da arrecadação[1], isso sem se falar no desestímulo aos contribuintes que pagam em dia. As renúncias fiscais correspondem a 40% do alegado déficit da Previdência; 80% delas são por prazo indeterminado; 40% não são fiscalizadas. Em 2018, foram R$ 292,8 bilhões de renúncias fiscais.
1.3 Equidade/igualdade
a) Contribuinte do Regime Geral da Previdência Social (INSS) que obtém uma média contributiva de R$ 2 mil deve ganhar o mesmo valor que aquele que chegou a uma média de R$ 1,5 mil?
b) Os servidores civis federais estão sujeitos à PEC, e por que não os militares e os servidores dos estados e municípios?
Para os militares, foi encaminhado o PL 1.645, com mudanças bem menos gravosas. Aliás, contempla até aumento. Para os servidores estaduais e municipais, dependerá de aprovação em suas respectivas legislações. Um servidor de mesmo cargo de Lages poderá ter regime previdenciário diferente daquele do município vizinho de Otacílio Costa. Dos 69 municípios de Santa Catarina que têm regime próprio, 63 apresentam déficit atuarial. Apenas 4 de 26 estados, mais o Distrito Federal, tiveram previdência no azul nos primeiros quatro meses deste ano.
Os servidores civis ativos e inativos federais são cerca de 1.536.000; os militares, em torno de 662.000. A proporção dos ativos é de 67% de civis para 33% de militares. O alegado “rombo” da previdência dos civis é de R$46,4 bi e dos militares R$43,9 bi.
c) Os servidores públicos federais que ingressaram em cargo público estatutário após 2013 estão com seus benefícios limitados ao teto do INSS (R$ 5.839,45), sendo este o valor máximo sobre o qual incide contribuição.
d) Os demais contribuem com alíquota de 11% sobre a remuneração do cargo, por isso o benefício pode exceder o teto do INSS, e continuam a contribuir, após se aposentarem, sobre o valor que supera esse teto.
e) O máximo que alguém da área privada recolhe (INSS) é 11% sobre R$ 5.839,45, mesmo que a remuneração seja superior.
2. A reforma vai beneficiar os mais pobres?
É falado que a reforma trará melhoria na economia do país, aumento do Produto Interno Bruto (PIB) e diminuição do desemprego, não afetando gravemente os mais pobres. Além disso, também é divulgado que a fixação de uma idade mínima (65 anos para homem e 62 anos para mulher) seria um dos poucos sacrifícios exigidos.
Alguns exemplos demonstram que os efeitos serão imediatos e afetarão, sim, os mais pobres. Imaginemos mortes ocorridas no dia anterior e no dia a partir do qual a emenda entre em vigor: pensão por morte concedida para apenas um beneficiário (por exemplo, cônjuge) deixa de ser 100% e passa a ser de 60% (de R$ 2 mil vai para R$ 1,2 mil, por exemplo); aposentado com um salário mínimo que passe a receber uma pensão por morte de um salário, em vez de ficar com dois salários (R$ 1.996), ficará com 1,8 salário (R$ 1.796,40).
3. Rombo da Previdência Social
Segundo o governo, em 2018 houve um “rombo” (déficit) de R$ 290,3 bilhões. Um primeiro olhar deve separar a parte do INSS daquela do Regime Próprio (RPPS/servidores públicos). A parte daquele no déficit é de R$ 195,2 bilhões, e a do RPPS, R$ 90,3 bilhões.
No INSS, os benefícios urbanos representam R$ 81,4 bilhões, e os rurais, R$ 113,8 bilhões. Já os benefícios de prestação continuada (BPC/Loas) importam cerca de R$ 50,3 bilhões ao ano. No RPPS o déficit da área civil é de R$ 46,4 bilhões, e o da militar, R$ 43,9 bilhões.
A Constituição criou a seguridade social como um sistema de proteção social que abrange os três programas sociais de maior relevância: Previdência Social, assistência social e saúde. Para receber prestações de saúde e assistência social, não há necessidade de se pagar contribuições sociais ou qualquer espécie de tributo. Por outro lado, para ter direito às prestações previdenciárias, é obrigatório o pagamento de contribuição previdenciária.
A partir dessa diferenciação se conclui que o governo calcula no déficit valores que não são devidos pela Previdência: benefícios rurais (mesmo sem contribuição obtêm-se prestações); e
BPC/Loas. Desta forma, do “rombo” devem ser deduzidos R$ 113,8 bilhões dos benefícios rurais e R$ 50,3 bilhões do BPC. Portanto, no âmbito do INSS, não é correto apresentar o déficit de R$ 195,2 bilhões, mas tão somente de R$ 31,3 bilhões.
No lado do RPPS, o “rombo” seria de R$ 90,3 bilhões, correspondendo R$ 46,4 bilhões aos civis e R$ 43,9 bilhões aos militares, mas estes são em número menor que a metade daqueles.
Um breve esclarecimento: a inatividade dos militares pode ser a reserva e a reforma. Esta é definitiva; aquela é passível de retorno à ativa mediante convocação ou mobilização. O número de reservistas que foram convocados (muitas vezes para funções não militares) entre 2012 e 2016 foi de 1.221.
O militar vai para a inatividade aos 30 anos de contribuição, com idade que varia de 44 a 66 anos, de acordo com o posto ou graduação, contribuindo com 7,5% de seu soldo (pensionistas, alunos, cabos e soldados não contribuem), obtendo ajuda de custo de quatro remunerações.
No PL 1.645, o tempo de contribuição passa para 35 anos, a idade vai para 50 a 70 anos (de acordo com o posto ou graduação), a contribuição sobe para 10,5% a partir de 2022 (8,5% em 2020; 9,5% em 2021) e a ajuda de custo para oito remunerações. A regra de transição (pedágio) fica em 17% a mais do tempo que faltar para completar 30 anos. Prevê aumento da remuneração e benefícios.
Nas contas do governo, isso geraria uma economia de R$ 10,45 bilhões em 10 anos. O “rombo” no sistema dos militares em 2018 foi de R$ 43,9 bilhões.
Os militares se inativam, em média, 10 anos antes dos civis, e a filha solteira do militar que ingressou até 2001 ainda pode vir a ser pensionista.
4. Regime Geral da Previdência Social (INSS)
4.1. Aposentadoria por tempo de contribuição
Atualmente não há idade mínima. Há necessidade de contribuição (carência) de 15 anos. O cálculo é feito pela média dos 80% maiores salários de contribuição. Aplica-se o fator previdenciário ou o sistema de pontos (soma de tempo de contribuição + idade). As alíquotas de contribuição variam de 8% a 11%.
Pelo texto aprovado, passa-se a exigir idade mínima de 62 anos para a mulher e 65 anos para o homem, tornando-a aposentadoria por idade. O tempo de carência permanece em 15 anos para a mulher e vai para 20 anos para o homem. O cálculo parte de 60% da média de todos os salários de contribuição, e o que superar 15/20 anos tem acréscimo de 2% ao ano, respectivamente. Serão necessários 40 anos de contribuição para ser integral (100%) para o homem e 35 anos para a mulher. As alíquotas de contribuição passam a ser progressivas: até R$ 998 = 7,5%; desse valor até R$ 2 mil = 9%; desse até R$ 3 mil = 12%; desse até R$ 5.839,45 = 14%.
A média de idade dos aposentados do INSS no Brasil é de 55,6 anos para homens e 52,8 para mulheres.
4.2. Regras de transição (filiados até a entrada em vigência da EC)
Regra 1: 30 anos de contribuição, se mulher, e 35 anos, se homem; somatório da idade e do tempo de contribuição equivalente a 86 pontos, se mulher, e 96, se homem; a partir de 1º/1/2020, acrescenta-se um ponto a cada ano até atingir 100/105.
Regra 2: 30 anos de contribuição, se mulher, e 35, se homem; idade de 56 anos, se mulher, e 61, se homem; a partir de 1º/1/2020, serão acrescidos seis meses a cada ano, até atingir 62/65.
Regra 3: na entrada em vigor contar com mais de 28 anos de contribuição, se mulher, e 33 anos, se homem. Preencher os seguintes requisitos: 30 anos de contribuição, se mulher, e 35, se homem; cumprimento de período adicional (pedágio) de 50% do tempo que, nessa data faltaria para 30/35 anos de contribuição (aplica-se o fator previdenciário).
Regra 4: 57 anos de idade, se mulher, e 60 anos de idade, se homem; 30/35 anos de contribuição, respectivamente; pedágio de 100% do que faltaria, na data de entrada em vigor da EC, para 30/35 anos de contribuição.
Regra 5 (aposentadoria por idade): 60 anos de idade, se mulher, e 65 anos de idade, se homem; 15 anos de contribuição; a partir de 1º/1/2020, a idade de 60 anos da mulher será acrescida em seis meses a cada ano, até atingir 62 anos.
Rural: não altera a aposentadoria. No entanto, a regra de acumulação de benefícios também se aplica ao beneficiário rural, reduzindo a quantia a ser recebida, como, por exemplo, de 2 salários mínimos para 1,8 salário mínimo (de R$ 1.996 a R$ 1.796,40).
4.3. Aposentadoria por incapacidade
O salário de benefício é de 100% nas hipóteses de acidente de qualquer natureza ou causa e de doença profissional ou do trabalho, bem como doenças graves (por exemplo, câncer após 20 anos de contribuição = R$ 2 mil). Pelo texto, apenas será 100% nos casos de acidente de trabalho, doenças profissionais e doenças do trabalho. Ficam de fora, portanto, acidentes de qualquer natureza e doenças graves. Para o cálculo, vai se partir de 60% do salário de benefício e serão acrescentados 2% ao ano do que exceder a 20 anos de contribuição. Tomando o exemplo anterior, na mesma situação de câncer, será R$ 1,2 mil.
4.4. Pensão por morte
No sistema em vigor, ela é de 100% do que recebia a pessoa falecida ou a que teria direito em situação de incapacidade. É reversível, ou seja, se forem dois pensionistas (por exemplo, cônjuge e filho), quando o filho atingir 21 anos, a parte deste fica para o cônjuge. Em regra, é acumulável com outro benefício (soma integralmente com sua aposentadoria).
Pelo texto aprovado, passa a ser uma cota de 50% + 10% para cada pensionista (por exemplo, 60% se apenas cônjuge; 70% se cônjuge + 1 filho); não reversível (no exemplo anterior, o cônjuge, em vez dos 100%, ficará com 60%).
Com o exemplo do câncer, em vez de R$ 2 mil seriam de R$ 720 (60% de R$ 2 mil = R$ 1,2 mil; e 60% deste valor — no caso de apenas um pensionista). Só será de 1 salário mínimo se a pensão for a única renda formal.
A acumulação com outro benefício ficará restrita:
- até 1 salário mínimo = 80% de 1 salário mínimo;
- de 1 a 2 salários mínimos = 60% de 1 salário mínimo;
- de 2 a 3 salários mínimos = 40% de 1 salário mínimo;
- de 3 a 4 salários mínimos = 20% de 1 salário mínimo;
- acima de 4 salários mínimos = 10% de 1 salário mínimo.
5. Regime Próprio dos Servidores Públicos Civis
5.1. Idade mínima/cálculo/contribuição
Desde 2003 (EC 41) já se exige idade mínima para se aposentar, sendo 60 anos para o homem e 55 anos para a mulher, e ainda 35 e 30 anos de contribuição, respectivamente. Aquele que ingressou até a EC 41 está no regime da paridade e integralidade, contribuindo com 11% sobre a remuneração.
Para aqueles que tomaram posse após a EC 41 e até a regulamentação em 2013, o cálculo do benefício é feito pela média das 80% maiores remunerações. A contribuição é de 11% sobre a remuneração.
Os inativos contribuem com 11% sobre o que supera o teto do INSS (R$ 5.839,45), e os que são portadores de doenças graves, com 11% sobre o que supera o dobro desse teto.
Se o ingresso se deu após 2013, a contribuição e o benefício estão limitados ao teto do INSS. Isso mostra que não é real a alegação de que se busca com a reforma a igualdade do RGPS com o INSS, pois ela já existe.
Com a PEC, as idades sobem para 65 anos para homens e 62 para mulheres. Para obtenção de 100% do benefício, há necessidade de 40 anos de contribuição. Se não partirá de 60% ao atingir 20 anos e se acrescentam 2% a cada ano que superar. O cálculo leva em conta a média de todas as contribuições a partir de julho de 1994. A contribuição passa a ser progressiva. Os inativos continuam a contribuir sobre o que supera o teto do INSS, e não há mais a redução em favor daqueles com doenças graves.
- Até R$ 998 (1 salário mínimo): 7,5%
- De R$ 998,01 a R$ 2 mil: 9%
- De R$ 2.000,01 a R$ 3 mil: 12%
- De R$ 3.000,01 a R$ 5.839,45: 14%
- De R$ 5.839,46 a R$ 10 mil: 14,5%
- De R$ 10.000,01 a R$ 20 mil: 16,5%
- De R$ 20.000.01 a R$ 39 mil: 19%
- Acima de R$ 39.000,01: 22%
Além disso, em caso de déficit atuarial, criou-se a permissão de cobrança de contribuição sobre todo benefício superior ao salário mínimo. Não bastasse, ainda há possibilidade de criação de contribuição extraordinária pelo prazo de até 20 anos. Lembre-se, isso apenas para servidores civis federais (ativos e inativos).
5.2. Aposentadoria por incapacidade
Atualmente corresponde a 100% em casos de acidente de qualquer natureza ou causa e de doença profissional ou do trabalho, doenças graves (por exemplo, câncer – R$ 6 mil).
Pela proposta, saem acidentes de qualquer natureza e doenças graves. Para estes: inicia-se em 60% + 2% ao ano do que ultrapassar 20 anos. Com o exemplo do câncer, 20 anos de contribuição = R$ 3,6 mil.
5.3. Regra de transição (apenas uma)
57 anos de idade, se mulher, e 60 anos, se homem; 30/35 anos de contribuição; 20 anos de efetivo exercício no serviço público e 5 no cargo; pedágio de 100% do período que, na data de entrada em vigor da EC, faltaria para 30/35 anos de contribuição. Para ter direito à paridade e à integralidade, o ingresso deve ser anterior à EC 41 e necessita atingir 62 anos de idade, se mulher e 65, se homem.
5.4. Pensão por morte
É de 100% do que recebia a pessoa falecida ou a que tinha direito ao benefício por incapacidade. É reversível e, em regra, é acumulável com outro benefício.
Pelo texto aprovado, passa a ser uma cota de 50% + 10% para cada pensionista (por exemplo, 60% se apenas cônjuge; 70% se cônjuge + 1 filho); não reversível.
Se tomarmos novamente o exemplo da morte por câncer, em vez dos R$ 6 mil, poderia ser de R$ 2.142,66. A acumulação com outro benefício ficará restrita (vide capítulo anterior).
6. E se nada for feito?
O ministro da Economia, na Comissão Mista de Orçamento (14/5/2019), disse que haverá queda do déficit primário, ainda que nenhuma reforma seja feita, ou seja, queda do endividamento do país.
Em face do fim do bônus demográfico (2017); aumento da quantidade de idosos na população: de 1 para 10 em 2018 a 4 para 10 em 2060; aumento na expectativa de sobrevida: em 1980, eram 16,1 anos para uma pessoa com 60 anos; em 2019, são 22,3 anos; redução da natalidade, continuamente devem ocorrer ajustes para a manutenção da Previdência Social. E isso já vem sendo feito na legislação ao longo dos anos, mas não de uma maneira tão drástica como a ora proposta.
[1] PAES, Nelson Leitão. Os efeitos dos parcelamentos sobre a arrecadação tributária. Disponível em: http:<//www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-41612014000200004>.
Marcelo Adriano Micheloti é juiz federal em Lages (SC) e especialista em Direito pela Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul).