Falta de precaução: em Brumadinho, direitos fundamentais foram atingidos por uma série de atos negligentes

 

O novo balanço divulgado pela Coordenadoria Estadual de Defesa Civil de Minas Gerais, em 20/2, aponta que o número de mortes confirmadas e de corpos identificados da catástrofe de Brumadinho subiu para 171.

De acordo com o órgão, 139 pessoas levadas pelo mar de lama despejado da barragem 1 da Vale seguem desaparecidas. Trinta e quatro são funcionários da Vale, e 105, funcionários terceirizados ou moradores do entorno.

Entre os desaparecidos iniciais, 393 foram localizados. Nesse ínterim, um grupo de importantes ONGs, integrado por Greenpeace Brasil, Mining Watch Canada e Global Justice Clinic of the New York University, pediu a exclusão da Vale do Pacto das Nações Unidas sobre Desastres em Barragens, como divulgado pelo The New York Times[1].

Por recomendação da Agência Nacional de Mineração (ANM), o Ministério de Minas e Energia (MME), por sua vez, definiu uma série de medidas de precaução de acidentes nas cerca de mil barragens existentes no país, começando neste ano e prosseguindo até 2021. A medida inclui a extinção ou descaracterização das barragens chamadas a montante até 15 de agosto de 2021. Dos tipos de barragens disponíveis para a mineração, como se sabe, as barragens a montante são as menos seguras e as mais baratas[2]. Referida medida de gestão pública, evidentemente, não basta; o gerenciamento de riscos[3] precisa melhorar também nas barragens inativas[4]. Sobre o tema bem refere, com notável qualidade técnica, o professor da USP, especializado em barragens, Luiz Henrique Sanchès:

Barragens inativas precisam ser tão bem cuidadas quanto barragens em operação, independentemente do método construtivo. Em alguns casos, barragens de rejeitos são verdadeiras jazidas minerais, contendo minério de teor aproveitável. Mas outras barragens não têm esse potencial e talvez fiquem para sempre não apenas como marcas na paisagem, mas também como bombas-relógio. Barragens inativas precisam de manutenção e monitoramento por períodos longos, que se estendem além do fechamento da mina. Portanto, cuidar de uma barragem inativa tem custo para a empresa num momento em que a mina não gera mais receita. Se os custos totais de construir, operar e desativar uma barragem de rejeitos forem devidamente contabilizados, alternativas tecnológicas que têm sido evitadas pelas empresas poderiam se revelar mais baratas[5].

Solta às escâncaras, nesse quadro, que houve aplicação tardia do princípio da precaução[6] e foi violado o princípio da proporcionalidade, em face da vedação da proteção insuficiente de direitos fundamentais[7], como o meio ambiente ecologicamente equilibrado e a vida humana, para não se mencionar outros, como a propriedade privada, em face dos bilionários danos decorrentes dessa catástrofe previamente anunciada pela própria tragédia de Mariana, três anos antes. É sabido e consabido, não se pode ignorar, que aumentaram as falhas sérias e muito sérias, que já não eram poucas, em barragens nos últimos anos[8], o que faz ainda mais graves as evidentes omissões e ações, privadas e estatais. Deve ser observado com atenção o gráfico que demonstra o aumento de falhas em barragens em todo o mundo:

 

 

A ausência de adoção de efetivas medidas precautórias pelo Estado brasileiro e por empresas privadas, para além de existir, se agrava em um cenário real de aumento de falhas em barragens. Não fosse essa infeliz constatação, resta cada vez mais evidenciado que a não adoção de medidas de precaução para a proteção da vida humana e do meio ambiente — direitos constitucionais fundamentais — gera mais prejuízos do que lucros[9]. Nesse sentido são os dados da NYSE, que aponta para o despencar das ações da Vale após a catástrofe de Brumadinho:

 

E o Brasil, impossível dourar a pílula, está totalmente desatualizado em matéria de gestão de riscos[10] de barragens – como demonstram de modo dramático os casos Brumadinho e Mariana –, uma vez que sequer avalia o impacto das mudanças climáticas[11] que possui, como consequência principal, o aumento das chuvas e outros eventos extremos de causas antrópicas que são riscos sérios e potenciais a serem considerados de modo atento e obrigatório na segurança das barragens[12].

O tema demonstra relevo na medida em que o número, a intensidade e o impacto das diversas formas de desastres[13], para além de não diminuírem ou estabilizarem, aumentam como fogo nas macegas em dias de vento.

A melhoria qualitativa e quantitativa das ações preparatórias para evitar e mitigar catástrofes, por outro lado, está em voga, como demonstra o documento de referência sobre o tema: Sendai Framework for Disaster Risk Reduction 2015-2030[14]. A efetiva incorporação dessa convenção-quadro na educação e na legislação ambiental é central para um melhor entendimento no âmbito do Direito do que seja a administração dos riscos de desastres e a sua correspondente e imperiosa mitigação. No diploma se defende uma implementação inovadora, multissetorial e coerente com a multiplicidade dos riscos de desastres como exposto com brilhantismo, aliás, em vanguardista e recente doutrina sobre o tema[15].

A Política Nacional de Segurança de Barragens necessita com urgência, afastada a retórica falaciosa, estar articulada com as sete metas globais da Convenção-Quadro de Sendai para a Redução do Risco de Desastres. São essas as metas a serem observadas:

(a) reduzir substancialmente a mortalidade global por desastres até 2030, com o objetivo de reduzir a média de mortalidade global por 100 mil habitantes entre 2020-2030, em comparação com 2005-2015;

(b) reduzir substancialmente o número de pessoas afetadas em todo o mundo até 2030, com o objetivo de reduzir a média global por 100 mil habitantes entre 2020-2030, em comparação com 2005-2015;

(c) reduzir as perdas econômicas diretas por desastres em relação ao produto interno bruto (PIB) global até 2030;

(d) reduzir substancialmente os danos causados por desastres em infraestrutura básica e a interrupção de serviços básicos, como unidades de saúde e educação, inclusive por meio do aumento de sua resiliência até 2030;

(e) aumentar substancialmente o número de países com estratégias nacionais e locais de redução do risco de desastres até 2020;

(f) intensificar substancialmente a cooperação internacional com os países em desenvolvimento por meio de apoio adequado e sustentável para complementar suas ações nacionais para a implementação deste quadro até 2030[16].

Nessa toada, parece que a mineradora e o Estado não poderiam ter se eximido de adotar medidas precautórias anticatástrofe aptas a interromper o nexo causal do mencionado ato-fato jurídico de Brumadinho e, consequentemente, não podem ficar alheios à reparação, em virtude de ações ou omissões, a serem apuradas, sob o crivo do devido processo legal, dos danos materiais e morais sofridos pelas vítimas e pelo meio ambiente.

A legislação constitucional e infraconstitucional brasileira adotou o princípio da precaução como instrumento de tutela do meio ambiente, acompanhando uma tendência internacional de implementação do princípio e este deve ser aplicado, logicamente, no gerenciamento dos riscos de catástrofes causados pelas barragens de mineração ativas e inativas[17]. Em caso envolvendo barragem, o STJ já determinou, em relevante precedente, a realização de obras, com base no princípio da precaução, para se evitar o rompimento desta, como no caso da barragem de Poços, localizada no município de ltaueira (PI)[18].

Em tempo, não se pode olvidar que o Poder Judiciário, não faz muito, aplicou a responsabilidade objetiva e a teoria do risco integral em caso específico de rompimento de barragem decorrente de atividades de mineração[19]. O dano moral, em matéria ambiental, também tem sido reconhecido por remansosa jurisprudência para compensação das vítimas em casos específicos de rompimentos de barragens administradas por mineradoras[20]. A jurisprudência, portanto, é firme no sentido do reconhecimento da responsabilização civil dos particulares e do poder público em litígios envolvendo o rompimento de barragens a serviço das atividades de mineração.

O Estado, as mineradoras, as corporações, as companhias e a sociedade civil necessitam estar vinculados estritamente ao cumprimento do previsto na 3ª Conferência Mundial das Nações Unidas sobre a Redução do Risco de Catástrofes, que adotou o Quadro de Sendai 2015-2030 e suas quatro conhecidas prioridades, a saber:

(a) aprofundar o conhecimento sobre o risco de catástrofes;

(b) fortalecer a componente de gestão do risco de catástrofes;

(c) investir na componente de redução do risco de catástrofes para uma melhor resiliência; e

(d) reforçar a componente de preparação para uma resposta efetiva.

É preciso integrar nas práticas de boa governança essas quatro prioridades construídas no âmbito do Gabinete das Nações Unidas para a Redução dos Riscos de Desastres, especialmente para a tutela e a concretização de direitos fundamentais hoje um tanto negligenciados e que são vitais para as presentes e futuras gerações dentro de uma perspectiva holística e intergeracional promotora do princípio e do direito fundamental ao desenvolvimento sustentável[21].

 


NOTAS

[1] THE NEW YORK TIMES. NGOs Push to Expel Brazil Miner Vale From U.N. Pact Over Dam Disaster. Disponível em: https://www.nytimes.com/reuters/2019/02/12/world/americas/12reuters-vale-sa-disaster-ngo.html. Acesso em: 21/2/2019.
[2] THE WALL STREET JOURNAL. Deadly Brazil Mine Accident Puts Waste Dams in Spotlight. Disponível em: https://www.wsj.com/articles/deadly-brazil-mine-accident-puts-waste-dams-in-spotlight-11548874428. Acesso em: 20/2/2019.
[3] Em relação a catástrofes, gerenciamento de riscos e respostas efetivas ver: POSNER, Richard. Catastrophe: Risk and Response. New York: Oxford Universtity Press, 2005.
[4] SANCHÈS, Luiz Henrique. É urgente gerenciar melhor riscos das barragens de rejeitos inativas. Jornal da USP. <https://jornal.usp.br/artigos/e-urgente-gerenciar-melhor-riscos-das-barragens-de-rejeitos-inativas>. Acesso: 21/2/2019.
[5] SANCHÈS, Luiz Henrique. É urgente gerenciar melhor riscos das barragens de rejeitos inativas. Jornal da USP. <https://jornal.usp.br/artigos/e-urgente-gerenciar-melhor-riscos-das-barragens-de-rejeitos-inativas>. Acesso: 21/2/2019.
[6] Sobre uma visão aprofundada e crítica do princípio da precaução consultar o professor da Harvard Law School Cass Sunstein em sua clássica obra: SUNSTEIN, Cass. Laws of Fear: Beyond the precautionary principle. New York: Cambridge Press, 2005. E sobre a análise dos riscos e do custo-benefício na adoção de medidas anti-catástrofe e precautórias consultar obra do mesmo autor: SUNSTEIN, Cass. Worst-Case Scenarios. Cambridge: Harvard University Press, 2007.
[7] A respeito deste tópico ver: WEDY, Gabriel. O princípio constitucional da precaução como instrumento de tutela do meio ambiente e da saúde pública. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2017. E, também, importantes artigos sobre o tema: SARLET, Ingo Wolfgang. Constituição e proporcionalidade: o Direito Penal e os direitos fundamentais entre proibição de excesso e de insuficiência. Revista da Ajuris, Porto Alegre, Ano XXXII, n. 98, jun. 2005; STRECK, Lenio. A dupla face do princípio da proporcionalidade: da proibição de excesso (übermassverbot) à proibição de proteção deficiente (untermassverbot) ou de como não há blindagem contra normas penais inconstitucionais. Revista da Ajuris, Porto Alegre, Ano XXXII, n. 97, p.201-2, mar. 2005; e, FREITAS, Juarez. Princípio da precaução: vedação de excesso e de inoperância. Revista Interesse Público, Sapucaia do Sul, ano VII, n 35, 2006.
[8] WORLD MINE TAILING FAILURES. Disponível em: https://worldminetailingsfailures.org. Acesso em: 20/2/2019.
[9] CNBC. Shares of Vale Plunge After a Company Owned Dam Breaks. Disponível em: https://www.cnbc.com/2019/01/25/shares-of-vale-plunge-after-a-company-owned-dam-breaks.html. Acesso em: 20/2/2019.
[10] A respeito de julgamentos em estados de incerteza, ver: VERMEULE, Adrian. Judging Under Uncertainty. Cambridge: Harvard University Press, 2006.
[11] Sobre o tema, Direito das Mudanças Climáticas, importante consultar uma das obras mais relevantes nos Estados Unidos e no Mundo sobre o assunto, ver: GERRARD, Michael; FREEMAN, Jody (Ed.). Global Climate Change and U.S Law. New York: American Bar Association, 2014.
[12] THE NEW YORK TIMES. Brazil’s Lethal Environmental Negligence.Disponível em: https://www.nytimes.com/2019/01/31/opinion/brazil-dam-break-environment-bolsonaro.html. Acesso em: 21/2/2019.
[13] Em relação ao Direito dos Desastres ver: FARBER, Daniel. Disaster Law and Inequality. Law and Inequality, Minneapolis, v. 25, n. 2, p. 297-322, 2007 e, igualmente, CARVALHO, Délton. Desastres ambientais e sua regulação jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.
[14] UNITED NATIONS OFFICE FOR DISASTER RISK REDUCTION. Sendai Framework for Disaster Risk Reduction. Disponível em: https://www.unisdr.org/we/coordinate/sendai-framework. Acesso em: 10/1/2019.
[15] Consultar: SAMUEL, Katja L.H; ARONSON- STORRIER, Marie; BOOKMILLER, Kirsten Nakjavani. The Cambridge Handbook of Disaster Risk Reduction and International Law. Cambridge: Cambridge University Press, 2019.
[16] UNITED NATIONS OFFICE FOR DISASTER RISK REDUCTION. Sendai Framework for Disaster Risk Reduction. Disponível em: https://www.unisdr.org/we/coordinate/sendai-framework. Acesso em: 10/1/2019.
[17] Sobre o tema ver: WEDY, Gabriel. O princípio constitucional da precaução como instrumento de tutela do meio ambiente e da saúde pública. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2017. Sobre as modernas tendências do Direito da Mineração e os riscos de gestão no âmbito internacional é relevante consultar: SOUTHALAN, John. Mining Law and Policy: international perspectives. Sydney: The Federation Press, 2012.
[18] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. AgInt no AREsp 958.718/PI, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 21/2/2017, DJe 18/4/2017.
[19] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REsp 1374284/MG, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Segunda Seção, julgado em 27/8/2014, DJe 5/9/2014.
[20] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. AgRg no AREsp 173.000/MG, Rel. Ministro Antônio Carlos Ferreira, Quarta Turma, julgado em 25/9/2012, DJe 1/10/2012.
[21] Sobre o direito fundamental ao desenvolvimento sustentável, ver: WEDY, Gabriel. Desenvolvimento sustentável na era das mudanças climáticas: um direito fundamental. São Paulo: Editora Saraiva, 2018.

 

Gabriel Wedy é juiz federal, professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), pós-doutor, doutor e mestre em Direito