Nesta quarta-feira, 13/6, o plenário do Supremo iniciou o julgamento das ADPF de nº 444 e 395, em que se busca, em linhas gerais, a declaração de que o art. 260 do Código de Processo Penal – que dispõe que “se o acusado não atender à intimação para o interrogatório, reconhecimento ou qualquer outro ato que, sem ele, não possa ser realizado, a autoridade poderá mandar conduzi-lo à sua presença” – não foi recepcionado pela ordem constitucional instituída a partir de outubro de 1988.

Em 19/12/2017, em análise conjunta das duas ações, o Ministro Gilmar Mendes concedeu medida cautelar em relação à ADPF nº 444, que questiona a condução coercitiva de meros investigados, proibindo tal prática em todo o território nacional, não a concedendo em relação ao pleito da ADPF nº 395, que dizia respeito a pessoas já acusadas em processos em curso.

Para quem não se recorda, o “espetáculo” das conduções coercitivas foi amplamente utilizado no bojo da famosa Operação Lava Jato, com investigados e acusados sendo retirados à força de seus lares por homens de preto, fortemente armados, para que fossem levados até a presença de autoridades que os interrogariam – e em grande parte das vezes, com ávido acompanhamento da mídia tupiniquim.

Passados quase seis meses da concessão da medida cautelar, iniciou-se o julgamento das ações pelo plenário do STF – junto com o suplício daqueles que, ingenuamente, ainda creem no respeito ao que de mais básico existe no Processo Penal e no Direito Constitucional.

O julgamento não se encerrou na quarta-feira, o que deve ocorrer nesta quinta, dia 14/6. Até aqui, temos 4 votos favoráveis à condução coercitiva e 2 contrários (Gilmar Mendes e Rosa Weber).

Abrindo a divergência, o Ministro Alexandre de Moraes entendeu que a condução coercitiva seria constitucional, mas desde que houvesse anterior e injustificada negativa do investigado em comparecer perante a autoridade. Moraes argumentou que não existe o direito de não participar da investigação, embora exista o direito ao silêncio.

Podemos perguntar a Moraes: qual a utilidade de se arrastar uma pessoa para interrogatório se, uma vez diante da autoridade, pode ela se calar?

Por seu turno, o Ministro Edson Fachin entendeu que, embora a prévia intimação do investigado ou réu seja a regra geral, esta poderia ser excepcionada quando a condução coercitiva se apresentasse como alternativa a medidas mais gravosas, como a prisão preventiva, entendendo ainda que há rigor excessivo contra os menos abastados e injustificada leniência com os poderosos envolvidos com o crime.

Pergunto aos leitores: o que a prisão preventiva (que possui requisitos próprios, contidos no artigo 312 do Código de Processo Penal) tem em comum com a condução coercitiva? Prende-se para se interrogar? Prende-se para se forçar o reconhecimento? Prende-se para forçar uma delação? Ora, ou estão presentes os requisitos para a prisão preventiva – devendo ela ser decretada – ou a prisão é absolutamente ilegal, não se mostrando aceitável o argumento de que a condução coercitiva é uma benesse para o acusado ou investigado, que foi alvo dela ao invés da prisão.

Outra questão posta por Fachin: nosso sistema é extremamente rigoroso com os mais pobres. Nisso concordamos. O Direito Penal é o mais eficiente instrumento de controle social, sendo o nosso processo penal um verdadeiro moedor de pessoas pobres e negras. Entretanto, ignora o Ministro que o rigor excessivo – e inconstitucional – em face de empresários e políticos abastados em nada diminuirá as injustiças e abusos perpetrados contra os mais pobres. Pelo contrário: manobras interpretativas buscando recrudescer o tratamento dado a algumas dezenas – no máximo centenas – de acusados poderosos refletem diretamente no recrudescimento do trato destinado aos mais miseráveis. Em português claro: endurecer o trato aos crimes de colarinho branco não ameniza a situação dos miseráveis que lotam os presídios brasileiros. Querem um exemplo?

Sabe-se que STF avalizou a prisão imediata logo após o julgamento de recurso criminal em segunda instância, independentemente do trânsito em julgado. Ao longo dos vários debates travados naquela Corte sobre o tema, seja nos processos originais, seja no julgamento do habeas corpus do ex-presidente Lula, os ministros invocaram a mudança de orientação como uma resposta à “impunidade” que beneficiaria réus abastados, que fazem uso de infindáveis recursos para postergar o trânsito em julgado e evitar a prisão. Ora, mas quantos “abastados” foram presos em razão da distorção constitucional trazida pelo STF? Essa resposta nós não temos, mas sabemos que, entre fevereiro de 2016 (data da mudança de entendimento) e abril de 2018, somente no estado de São Paulo foram presas pelo Tribunal de Justiça pelo menos 14.000 pessoas comuns [1]. Imediatamente após o julgamento em segundo grau, independentemente do trânsito em julgado.  E isso só em São Paulo. Será que foram condenados e presos antes do trânsito em julgado pelos menos 100 políticos ou empresários corruptos nesse mesmo período?

Mas sigamos, desta vez, com o Ministro Luís Roberto Barroso, que foi além. Para ele, em razão dos pareceres da Câmara, do Senado, da Presidência da República, da Procuradoria-Geral da República e da Advocacia-Geral da União, todos defendendo a validade da norma “seria necessário, […] um exacerbado ativismo por parte do Supremo para sobrepor posição diferente nesta matéria”.

Pergunta-se: quem é o guardião máximo da Constituição? A Advocacia-Geral da União, a PGR ou o STF? Para que serve STF e o exercício do controle de constitucionalidade se o que vale são os pareceres desses órgãos, com alguns deles tendo o dever funcional de defender a norma impugnada, por mais absurda que seja? Desde quando é “exacerbado ativismo” declarar que determinada norma não foi recepcionada por ser ofensiva a direitos fundamentais?  O mesmo Ministro Barroso já afirmou em artigo da Folha de S. Paulo[2] que caberia ao STF uma “vanguarda iluminista”, no sentido de ser possível à Corte agir de forma mais ativa em certos momentos históricos, para promover avanços civilizatórios. E o que seria mais civilizatório do que preservar um direito fundamental?

Mas não é só. Barroso ainda diz que haveria um “surto de garantismo” em reação ao que ele enxerga como “evolução” do Direito Penal brasileiro, que estaria chegando ao andar de cima graças a “juízes corajosos” que rompem com o pacto oligárquico que protege os poderosos.

Com todo o respeito, não se vislumbra nenhum “surto garantista”, já que desde muito tempo o garantismo penal vem sendo defendido por aqueles que sacrificaram e sacrificam seu tempo e por vezes suas vidas na luta pelos que são historicamente perseguidos pelo Estado penal. Não existe evolução na restrição de direitos fundamentais, e, como já dito acima, a prática de violações com o pretexto de alcançar os donos do poder não traz nenhum benefício aos presos pobres alvos do sistema penal, muito pelo contrário.

E “juízes corajosos”, Ministro Barroso? Coragem é cumprir a Constituição, de forma contramajoritária, ainda que isso leve à perda da chance de prêmios pela imprensa tradicional e de poses em tapetes vermelhos.

Já o Ministro Fux, também favorável à condução coercitiva, chegou a argumentar que o “direito ao silêncio” surgiu para impedir a mentira por parte dos acusados, que não poderiam combinar versões que frustrariam a ação estatal, e que configurariam “periculum in mora” para o processo, sendo que para evitar isso poderia o juiz fazer uso de medidas cautelares. Uma visão no mínimo utilitarista, e que coloca direitos fundamentais (inclusive a ampla defesa) em segundo plano.

É possível que hoje, ao final do julgamento, o STF forme maioria contra a condução coercitiva, fazendo valer, ainda que de forma apertada, um direito fundamental. Mas não deixa de causar perplexidade que se defenda que um réu – ou mero investigado – possa ser arrastado para depor se, uma vez diante da autoridade, pode simplesmente ignorar as perguntas que lhe forem feitas, calando-se, exercendo um direito constitucional.

Logo, qual seria o sentido dessa condução? Propiciar a proliferação de espetáculos deprimentes com homens de preto, fuzis e balaclavas arrastando pessoas algemadas ao raiar do dia, para o gozo das massas? Permitir que a prática se estenda aos fóruns estaduais, com mais um pretexto para se invadir barracos em comunidades carentes?

Aguardemos. Este “surto punitivo” não pode durar para sempre.

 

Bruno Bortolucci Baghim é defensor público do Estado de São Paulo

 


Referências:

[1] https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/06/apos-decisao-de-segunda-instancia-justica-manda-prender-14-mil-pessoas.shtml

[2]https://www.conjur.com.br/2018-fev-23/artigo-barroso-defende-papel-iluminista-stf