Luís Roberto Barroso: no julgamento de habeas corpus em favor de Lula, ministro do STF sustentou que recursos em tribunais superiores contribuem para a prescrição de processos criminais

 

Nos últimos anos, o debate político brasileiro foi tomado, quase que exclusivamente, por uma única pauta: a corrupção. Esta foi colocada pela grande mídia e por boa parte dos brasileiros como o grande problema do país, a raiz de todos os nossos males. E, junto com essa simplificação dos problemas, é claro, veio também a simplificação das soluções.

Figuras políticas das mais diversas vertentes, e a própria Suprema Corte, têm alardeado o fim do famigerado “foro privilegiado” como o grande remédio para o país. Alegam eles que esse mecanismo se tornou uma máquina de impunidade para os poderosos e que o Brasil só caminhará para o futuro que merece quando o tal do “foro” acabar.

E, mais uma vez atendendo a um suposto “clamor popular”, essa semana o STF encarnou o legislador (de novo) para mudar algumas regras a respeito do “foro privilegiado”. O voto de Barroso, o pseudo-garantista que adora falar em impunidade, acabou vencendo para restringir o privilégio de foro apenas para os crimes cometidos durante o mandato e em função do cargo.

Em resumo, se, durante o mandato, um deputado “bater uma carteira”, será julgado em 1ª instância, mas se desviar alguma verba aproveitando-se de sua posição, será julgado pelo STF. Qualquer crime cometido antes de ser eleito, por sua vez, será julgado em 1ª instância.

Curioso é que, embora mais de 55 mil autoridades gozem do privilégio de foro, o STF apenas limitou o direito para deputados e senadores, justo os cargos que o instituto do “foro privilegiado” mais intenciona proteger de ataques antidemocráticos. Ministros, juízes, promotores e outras autoridades seguem intocados, algo que poderia ser mudado através de alguma PEC, o que não acontecerá este ano já que a intervenção no Rio de Janeiro impede reformas na Constituição.

Por enquanto, só quem “emenda” a Constituição no Brasil é mesmo o STF, embora essa não seja a sua função e embora nenhum de seus membros tenha sido eleito pelo povo para poder exercer essa função com alguma legitimidade. Ditadura de toga pouca é bobagem.

Não que a questão do “foro privilegiado” não tenha alguns problemas que mereçam correção, mas, me perdoem os que creem nessa tábua de salvação, modificá-lo sequer arranharia as estruturas da corrupção no país.

Os defensores da medida argumentam, por exemplo, que o julgamento de autoridades por tribunais superiores aumenta a impunidade pela demora das ações criminais nessas instâncias. Eduardo Azeredo, ex-Governador de Minas Gerais pelo PSDB, está aí para provar o contrário. Com crimes cometidos em 1998, o tucano segue livre, ainda sem dar início ao cumprimento de pena.

Outro caso emblemático que, como o de Azeredo, teve início na 1ª instância, mas que se arrasta por ainda mais tempo, é o julgamento do Massacre do Carandiru. Ocorrido em 1992, entre uma atuação no mínimo suspeita de promotores e juízes de 1ª instância e declarações vergonhosas de desembargadores, o massacre segue em julgamento que se arrasta até hoje após a anulação do Júri pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. A assombrosa atuação da justiça de 1ª instância no caso, aliás, deixo para retomar mais à frente neste artigo.

Mas muitos outros exemplos de demora nas instâncias ordinárias ainda podem ser citados. Aliás, o próprio Ministro Barroso já nos fez esse favor ao dar o seu atrapalhado voto no recente julgamento do HC de Lula. Na ocasião, Barroso, tentando demonstrar como recursos impetrados nos Tribunais Superiores contribuíam para a prescrição de processos criminais, acabou, sem querer, mostrando a morosidade dos tribunais ordinários.

Como bem analisou o professor Andrei Zenkner Schmidt, dos 7 casos citados por Barroso em seu voto, 4 encontraram maior morosidade na 1ª instância do que nos Tribunais Superiores. Não bastasse o absurdo de colocar o princípio da celeridade processual na frente do da presunção de inocência, o pseudo-garantista Barroso ainda comprovou que, por cima ou por baixo, o Judiciário só trabalha rápido quando quer. Lula que o diga.

Independentemente de quem esteja demorando mais, é importante dizer que um julgamento célere é um direito previsto na Constituição, mas não é, por si só, uma garantia de um julgamento justo. De nada adianta uma ação judicial rápida que esmague outros direitos importantes como o contraditório e a ampla defesa.

Além disso, ao menos para mim, preocupa muito mais a demora no julgamento de pessoas presas que ainda nem tiveram a oportunidade de sentar à frente de um juiz, como é o caso de 40% dos cerca de 700 mil presos no Brasil. Em Pernambuco, por exemplo, 84% dos presos provisórios esperam mais de 6 meses para enfim serem julgados.

Por fim, espanta que um Ministro defenda que, para corrigir a morosidade da justiça, deve-se diminuir direitos fundamentais dos cidadãos. Ora, que culpa nós temos se algumas das Excelências passam mais tempo passeando em Portugal do que trabalhando no Brasil?

Enfim, dado o histórico da Justiça brasileira, não me parece que o fim do “foro privilegiado” seja uma garantia de que políticos corruptos não mais escaparão de seus crimes através da prescrição.

Tampouco me parece razoável a ideia de que os tribunais ordinários tenham maior idoneidade na hora de julgar. Pode parecer absurdo, mas, talvez tomados por uma idolatria a algumas divindades togadas como Moro, defensores da extinção do “foro privilegiado” têm usado o argumento de que, em 1ª instância, não haveria espaço para conchavos que livrassem corruptos de suas punições.

Aqui, retorno ao julgamento do Massacre do Carandiru para dizer que essas pessoas não poderiam estar mais erradas. É bem verdade que a anulação do Júri que condenou 74 policiais se deu pelos desembargadores de 2ª instância, mas foi uma série de erros cometidos no tribunal ordinário que possibilitaram a impunidade.

Em 1ª instância, o Procurador responsável pela acusação chegou a justificar o assassinato pelo fato de “o pavilhão estar cheio de assaltantes e assassinos perigosos que protegiam facções”. Foi esse mesmo Procurador quem não viu problemas em adiar a perícia de confronto balístico, algo que seria essencial para individualizar as condutas dos policiais, ou seja, dizer quem matou quem.

Pouco tempo depois, as balas acabaram sumindo (ou foram sumidas) e não foi mais possível produzir essa prova essencial. A impossibilidade de individualizar as condutas foi o ponto chave para os desembargadores anularem o Júri que havia condenado os 74 policias. Aliás, vale lembrar que esse processo correu em 1ª instância por mais de 20 anos, demorando apenas 3 anos para ser julgado em instância superior. Com a anulação, o processo continua se arrastando sem solução.

Esse é só um dos muitos casos em que os tribunais ordinários mostraram sua seletividade. Quando autoridades estão envolvidas, aliás, é recorrente a atuação leniente da Justiça logo na 1ª instância. Jogue no Google a busca “policiais absolvidos” e veja com os próprios olhos.

São casos inexplicáveis como o assassinato dos dois pichadores em São Paulo, em 2014, onde os PMs foram absolvidos sumariamente e sequer foram à Júri. Ou então o processo que julgava os PMs envolvidos na chacina da Cabula de 2015. Nesta ação, a juíza substituta assumiu o processo durante as férias do juiz titular e absolveu sumariamente os policiais se utilizando do Código de Processo Civil. A “generosidade” da juíza foi tamanha que a absolvição se estendeu a 10 policiais, embora somente 9 estivessem sendo processados.

A própria absolvição de Claudia Cruz, esposa de Eduardo Cunha, e os seguidos “perdões” a Alberto Youssef, tanto no Banestado (maior caso de corrupção da história recente do país) quanto na Lava Jato vieram pelas mãos do juiz de 1ª instância Sérgio Moro. Também não faltam casos de juízes de 1º grau que tenham sido acusados de venderem sentenças, muitas vezes, aliás, punidos apenas com a aposentadoria compulsória.

Enfim, ao contrário do que pregam os defensores do fim do “foro privilegiado”, levar casos de autoridades às instâncias inferiores não é garantia de justiça. É claro, porém, que o instituto do “foro privilegiado” não é perfeito e possui suas distorções. Para criticar tais problemas, porém, é preciso compreender melhor o que é esse tal de foro.

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Como podem ter percebido, a expressão “foro privilegiado”, até agora, somente apareceu neste texto entre aspas. Isso porque essa é a maneira informal como é conhecido o chamado foro especial por prerrogativa de função. É importante conhecer seu nome jurídico verdadeiro para entender a real importância deste instituto.

Isso porque o direito de ser julgado originariamente em instâncias superiores não está ligado a pessoas, mas sim a funções. E são essas funções, importantíssimas para o funcionamento de uma democracia, que estão sendo protegidas pelo instituto do “foro privilegiado”. Assim, o foro por prerrogativa de função, que está longe de ser uma exclusividade brasileira, serve para, de certa forma, trazer um equilíbrio entre os Poderes do país.

De um lado, ele coloca funções extremamente importantes para o país sob o julgamento de órgãos colegiados que, por não concentrarem o poder decisório na mão de apenas uma pessoa, seriam, ao menos em tese, menos falíveis na hora de exercer a Justiça. Além disso, a colegialidade também poderia ser vista como uma forma de diminuir as possibilidades de que o Judiciário se torne uma máquina de perseguição política a opositores. Nessa visão, o “foro privilegiado” seria um gatilho que asseguraria a democracia e a divergência política, além de garantir certa segurança jurídica ao país aos olhos da comunidade internacional.

Não à toa, o AI-5 da Ditadura Militar, em seu artigo 5º, inciso I, ao suspender direitos políticos, determinou a “cessação de privilégio de foro por prerrogativa de função”, junto com a suspensão de eleições sindicais, a proibição de manifestações de natureza política e outras restrições a liberdades.

Por outro lado, o foro por prerrogativa de função também protege os próprios membros do Judiciário e do Ministério Público que venham a julgar e acusar outras autoridades, já que, em tese, coloca o julgamento de tais autoridades nas mãos de juízes e promotores hierarquicamente superiores e mais fortes, com maior proteção institucional, garantindo que eles não venham a sofrer com pressões externas.

Por isso fala-se em maior equilíbrio entre Poderes, já que, teoricamente, o “foro privilegiado” age nos dois lados ao proteger julgadores e julgados de perseguições e influências externas.

Na prática, porém, o que vemos na atualidade é uma falência total da Justiça brasileira, onde as perseguições políticas tomaram todas as instâncias do Poder Judiciário no que chamamos de “judicialização da política”. No Brasil, a recente trajetória de Lula mostra bem que, se o fim do “foro privilegiado” pode causar insegurança jurídica, os Tribunais Superiores estão longe de garantirem isenção quanto a perseguições políticas.

Quando Dilma nomeou Lula como Ministro Chefe da Casa Civil em 2016, a Justiça de 1ª e 2ª instâncias causou grande confusão no país ao suspender e autorizar, seguidamente, a posse do ex-Presidente. Foram três liminaresimpedindo a posse vindas de 3 Estados diferentes em menos de 3 dias, até que a situação fosse enfim “pacificada” com uma decisão do Supremo. Foi um caso que mostrou com clareza a instabilidade política na qual o país pode ser jogado caso cargos políticos venham a ficar à mercê de qualquer juiz do país.

A mesma situação mostrou, porém, que um julgamento em instâncias Superiores tampouco está livre de ser pautado por perseguições políticas, já que a Suprema Corte decidiu por impedir a posse de Lula como Ministro, mas, pouco tempo depois, em caso semelhante envolvendo Moreira Franco, mudou o entendimento para garantir a posse do Ministro de Temer.

Também não podemos falar que os membros de Tribunais Superiores estejam completamente livres de influências externas simplesmente por estarem em uma alta posição hierárquica. O que dizer, por exemplo, da ameaça via Twitter feita pelo General Villas Bôas ao STF um dia antes do julgamento do HC de Lula?

Do mesmo modo, ou talvez até mais vulneráveis, estão os juízes de instâncias inferiores. A juíza Patrícia Acioli foi assassinada por punir autoridades policiais. A juíza Kenarik Boujikian e o juiz Luis Carlos Valois foram perseguidos simplesmente por terem uma visão mais garantista do Direito Penal.

Em suma, o que se pode depreender destes casos e de tantos outros semelhantes que ocorreram nos últimos anos é que, tanto nas primeiras instâncias quanto nos Tribunais Superiores, o Brasil falhou em conseguir construir um Poder Judiciário que não agisse por interesses políticos escusos. Nessa linha, não faz sentido colocar o fim do “foro privilegiado” como a grande salvação nacional para o país, dada a falência generalizada do Sistema de Justiça brasileiro.

De nada adiantar extinguir o foro por prerrogativa de função se não mudarmos a estrutura geral do Judiciário, o Poder com menos mecanismos de participação popular do país.

A começar pela estrutura do Conselho Nacional de Justiça, único órgão não jurisdicional do Judiciário (ou seja, que não julga conflitos processuais). A função do CNJ é justamente a de fiscalizar e controlar a atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e de seus membros.

É o CNJ, por exemplo, que pode punir juízes que “sentam” em processos por motivos políticos, que cometam abusos de poder ou que recebam benefícios ilegalmente, como ocorre com a farra dos auxílios-moradia. Porém, é raro ver juízes punidos por tais atos e, quando isso ocorre, muitas vezes a punição é uma aposentadoria compulsória que mais parece um prêmio.

Isso acontece porque, dos 15 membros do CNJ, 9 devem ser nomeados entre membros do próprio Judiciário. Outros 2 são membros do Ministério Público, mais 2 são advogados indicados pela OAB e a última dupla é de cidadãos nomeados por Senado e Câmara Federal. Essa composição favorece o corporativismo exagerado e transforma o CNJ em um órgão que mais protege os erros dos juízes do que os fiscaliza propriamente.

Ainda que seja plausível que juízes no país todo sejam selecionados por concurso público, já que sua atividade jurisdicional tem alto grau técnico e exige certa independência, não se explica o porquê dos membros do CNJ não serem submetidos a eleições populares e abertas. Em uma democracia, quanto mais as funções de administração e fiscalização forem abertas ao povo, melhor.

Além disso, vale lembrar que juízes também têm “foro privilegiado” e extingui-lo faria com que juízes que cometam crimes possam ser julgados por seus colegas de fórum. Hoje, por exemplo, um juiz de 1ª instância que comete um crime é julgado por desembargadores de 2ª instância.

Sem o foro por prerrogativa de função, um juiz criminal que cometesse um delito poderia ser julgado pelo juiz de 1ª instância que trabalha diariamente no gabinete da Vara Criminal vizinha a sua. Se a punição de juízes por instâncias superiores já é difícil, imagine se as investigações ficarem a cargo de colegas de trabalho ainda mais próximos?

É possível, também, questionar o modelo de Suprema Corte que adotamos para o Brasil. Se é praticamente impossível dissociar o STF da política nacional, e se o próprio Supremo se enxerga como um órgão de caráter político sujeito ao “clamor popular”, poderia ser mais plausível, talvez, que ele não integrasse o Poder Judiciário ou se submetesse a eleições como os demais Poderes, o que lhe garantiria maior legitimidade em suas ações.

Não faltam exemplos de Tribunais Constitucionais com maior participação política, como Alemanha, França ou Portugal.

Não quero, aqui, delimitar qual seria o modelo ideal de Tribunal Constitucional para o país. Mas creio que devemos agir para despolitizar a Suprema Corte do país ou, ao contrário, politizá-la de vez criando maiores possibilidades de controle popular sobre a instituição. Confesso que me atrai mais a segunda opção, mas estou certo de que não podemos continuar nesse “limbo” onde a Suprema Corte age como órgão político, mas não se submete a controles políticos tradicionais.

Porém, se a preocupação geral do Brasil é a de combate à corrupção, antes de qualquer debate sobre o Judiciário, o país precisa superar de vez a noção de que todos os seus problemas podem ser resolvidos apenas com polícia, juízes, promotores e processos criminais.

Nesse sentido, as “10 medidas contra a corrupção” propostas pelo MPF, que, curiosamente, são defendidas pelos mesmos que clamam pelo fim do “foro privilegiado”, foram mais uma ação inócua que pouco poder teria no combate à corrupção. Tudo o que as medidas propunham nada mais era do que a concessão de superpoderes a autoridades como delegados, juízes e promotores.

Convenhamos, dar superpoderes a autoridades é, ao contrário, o princípio básico de qualquer esquema de corrupção no mundo. Fazendo isso, as “10 medidas” mais possibilitariam atos de corrupção dessas autoridades do que combateriam a dita “roubalheira” no país. Por outro lado, espanta que um documento intitulado como “10 medidas contra a corrupção” não falasse absolutamente nada sobre leis de licitações e contratos públicos, Tribunais de Contas, Ouvidorias, Corregedorias, Controladorias e outras formas de fiscalização e controle popular.

Vale lembrar que uma das primeiras medidas do Governo Temer foi, justamente, reduzir a autonomia da CGU e fazer alguns cortes no setor. Nos escândalos do Rio de Janeiro, no ano passado, 5 dos 7 Conselheiros do Tribunal de Contas do Estado foram presos sob suspeitas de permitirem atos de corrupção por parte do Governo Estadual. O Poder Judiciário tem calafrios só de ouvir falar na criação de Ouvidorias externas, já que, atualmente, os ouvidores de justiça são os próprios juízes.

Todos esses órgãos são essenciais na luta contra a corrupção e na transparência, porém, são constituídos por nomeações nada democráticas feitas pelas próprias pessoas que deveriam ser fiscalizadas. Mas o discurso de combate à corrupção que se vê na grande mídia ignora tais problemas, focando em discussões vazias como o fim do “foro privilegiado” ou em posições perigosas e antidemocráticas como a cultura punitivista e o aumento do poder das polícias e do Judiciário.

Assim, a bandeira do fim do “foro privilegiado” se tornou uma arma populista na boca de pessoas que buscam votos ou aprovação a qualquer custo. Se tornou a proposta de quem não teve a capacidade de pensar em proposta alguma. A proposta de quem talvez tenha motivos para ter medo de falar em construção de poder popular.

Por que certamente não acabaremos com a corrupção dando superpoderes a algumas autoridades e muito menos com o fim do “foro privilegiado”. Corrupção se combate com participação popular e transparência e o Brasil tem um sério déficit democrático nessa questão.

 


Almir Felitte é advogado, graduado pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.