Crise no sistema prisional: aplicação da pena após julgamento em segunda instância poderá aumentar o número de pobres encarcerados no País
Nos últimos dias, seguindo uma tendência que se consolida há tempos, a justiça criminal está no centro dos noticiários em razão de debate sobre dispositivo constitucional com o intuito de combater a “sensação de impunidade”. Discute-se, não só no STF, mas nos mais diversificados espaços, se a prisão decretada em razão de julgamento em 2ª instância é compatível ou não com nosso ordenamento jurídico.
Arautos do discurso punitivista afirmam que a decisão afetará apenas aquelas pessoas processadas por crimes de “colarinho branco”, raridade no seletivo sistema de justiça criminal, e que a prisão em segunda instância é a única chance de combate à corrupção.
Desavisadamente, um autor consternado com a seletividade do sistema criminal publicou artigo, em 13/4/17, que termina por reforçar o discurso punitivista, formulando um raciocínio de que a execução de prisão em segunda instância apenas atingiria réus de colarinho branco, sem apresentar qualquer reversão do caráter injusto e violador de direitos da grande parte da população prisional brasileira.
O texto apresentava dados sobre prisões cautelares no Brasil, seguindo sempre a premissa de que nunca vira – e portanto não haveria – réu pobre livre já julgado em segunda instância. Em breve síntese, dizia que o fato de a maioria das pessoas presas serem negras, pobres e com baixa escolaridade, conforme levantamento realizado pelo Ministério da Justiça, combinado com um índice de cerca de 40% de presos provisórios no país, levaria à conclusão de que a clientela cativa do sistema punitivo não seria afetada pela decretação de execução de pena de prisão em segunda instância.
Contudo, com o devido respeito ao articulista e ex-assessor do ministro Luiz Fux, é preciso olhar a realidade com um pouco mais de atenção para não ignorar o aumento do encarceramento da pobreza oriundo dessas prisões em segunda instância.
Não se nega a seletividade da persecução penal em todas as suas esferas, desde a atuação policial até a prisionalização, passando pelo processo criminal. É inegável o acerto do texto, ao indicar com precisão quem o braço armado do estado carrega para dentro dos muros das prisões e coloca diariamente no banco dos réus, das viaturas e das cadeias.
Concorda-se com o apontamento feito sobre o excessivo uso de prisões preventivas no país, tanto que 40% das pessoas presas lá estão provisoriamente e, destas, a maioria são pobres, jovens e negras.
Entretanto, de suas duas premissas (seletividade do sistema penal e abuso da prisão preventiva) não é possível extrair a conclusão de que pobres não serão afetados pela violação da presunção de inocência, por meio da prisão a partir da segunda instância.
Pior que está, fica – As premissas, ao contrário, levam à conclusão lógica que mais negros e pobres serão encarcerados, pois aqueles poucos que, inicialmente, não foram presos preventivamente o serão após a decisão em segundo grau, mesmo não havendo qualquer segurança de que as decisões oriundas dessa instância serão mantidas nos tribunais superiores.
De acordo com dados de 2015 compilados pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo, através do seu Núcleo de Segunda Instância e Tribunais Superiores, com atuação em Brasília, verifica-se que, em sede de habeas corpus julgados pelo Superior Tribunal de Justiça, o índice de concessão da ordem em benefício do paciente é, em média, de 50% do total de impetrações.
Ou seja, cerca de 4 mil pessoas tinham seus direitos efetivados através de decisões favoráveis, incluindo situações de diminuição de pena, alteração de regime, absolvição e outros benefícios.
E essa situação não é recente. Em pesquisa realizada pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) – Direito Rio [1], com recorte temporal entre 2008 e 2012, indicou-se que, dos habeas corpus impetrados pelas Defensorias Públicas de todo o Brasil, 66,4% deles têm a ordem concedida perante o STJ e 43,2% perante o STF.
Confirmava-se o que a experiência já indicava: que a segunda instância não julga de acordo com os precedentes dos tribunais superiores e, portanto, não há qualquer viabilidade de garantir, a partir dela, a segurança jurídica necessária para o início de cumprimento da pena.
Pesquisa realizada pela Associação Brasileira de Jurimetria (ABJ) com apoio do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP) concluiu que, a depender da câmara criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, o recurso de um réu tem chances que variam entre 16% e 81% de ter seu recurso improvido. É impossível, portanto, afirmar que que existe segurança jurídica para afastar a presunção de inocência a partir da decisão em segundo grau, além da clara ofensa à norma constitucional.
Reconhecida ilegalidade – Levantamento feito pelo Núcleo Especializado de Situação Carcerária da Defensoria Pública do Estado de São Paulo evidencia que pelo menos 13.887 mandados de prisão foram expedidos pelo Tribunal de Justiça paulista após acórdão de segundo grau, no período compreendido entre 18/2/16 e 4/4/18, com fundamento em um único habeas corpus, qual seja, o HC nº 126.292.
Tais dados não se alteraram muito no ano de 2017, o que demonstra que as decisões de segundo grau continuam a não observar a jurisprudência das Cortes Superiores. Nessa toada, o respeito à garantia constitucional da presunção de inocência seria instrumento impeditivo de milhares de injustiças. De acordo com dados estatísticos compilados também pelo Núcleo de Segunda Instância e Tribunais Superiores da Defensoria Pública do Estado de São Paulo no ano de 2017, foram recebidas 19.411 intimações. Tais intimações apontam média anual de 26% de decisões liminares concessivas de ordem em sede de habeas corpus impetrados somente pela DPSP no STJ. Em relação a decisões de mérito concessivas de ordem, tal percentual sobe para 44% em 2017, o que significa que 8552 pessoas estavam cumprindo pena de maneira ilegal.
Somente em agosto de 2017, a Defensoria Pública do Estado de São Paulo recebeu 4025 intimações do STJ relativas a habeas corpus impetrados por ela, dos quais 1.214 foram concessivos de ordem, seja em sede liminar, no mérito (concessiva ou de ofício), ou seja, 1214 pessoas estavam cumprindo pena de maneira ilegal.
Essas e outros milhares de pessoas, ao iniciar o cumprimento da pena a partir de condenação em segunda instância, as estarão cumprindo de maneira ilegal, tanto que o índice de reforma nos tribunais superiores é elevado.
E lembre-se mais uma vez que a persecução penal, como bem observou o artigo já referido, atinge, em sua imensa maioria, jovens negros e pobres, ou seja, serão esses milhares que terão suas garantias ainda mais violadas do que antes.
Qualquer relativização ou supressão de garantias processuais penais atingirá, em regra, os grupos que já têm seus direitos violados diariamente. Não há diferença significativa no perfil daqueles que respondem ao processo criminal soltos ou presos. A justiça criminal seleciona para os dois lados o mesmo público, sendo os réus de crimes de colarinho branco raridade em qualquer desses grupos.
E é por isso que todos aqueles comprometidos com a defesa de um estado de direito devem cuidar para que sejam observadas as garantias processuais penais de maneira intransigente. Devem buscar corrigir as distorções entre o desrespeito às garantias da maioria dos acusados de crimes de rua e seu respeito, em regra, nos raros processos contra a elite. Mas de forma que sejam resolvidas com a correção dos desrespeitos, nunca com a redução das garantias.
Repita-se, sempre, que qualquer relativização ou supressão de garantias atingirá com muito maior força a parcela da população corriqueiramente selecionada pelo poder punitivo.
Isso não é “usar” os pobres, como foi dito. Pelo contrário, lutar pela prevalência das garantias processuais penais significa defender as centenas de milhares de pessoas que são diuturnamente apanhadas pelo sistema penal e têm seus direitos desrespeitados com poucas possibilidades de defesa.
Não se pode admitir o avanço do poder punitivo estatal, sob nenhum pretexto, porque isso só aumentará o número de pobres, jovens e negros selecionados por um sistema penal racista e classista, como todo sistema penal. Isso é o contrário do que queremos e, certamente, do que parece querer o autor do artigo mencionado.
Leonardo Biagioni de Lima é defensor público e coordenador do Núcleo Especializado de Situação Carcerária da Defensoria Pública do estado de São Paulo
Mateus Oliveira Moro é defensor público coordenador do Núcleo Especializado de Situação Carcerária da Defensoria Pública do estado de São Paulo
Thiago de Luna Cury é defensor público Coordenador do Núcleo Especializado de Situação Carcerária da Defensoria Pública do estado de São Paulo
[1] Projeto Panaceia universal ou remédio constitucional? Habeas Corpus nos Tribunais Superiores. Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/ radiografia-habeas-corpus.pdf