Supremo Tribunal Federal: a colegialidade e o julgamento do habeas corpus de Lula, na visão de Lenio Streck
Se eu tivesse que escrever um artigo bem enxuto, diria simplesmente o seguinte:
I) Levar o pedido de habeas corpus de Lula ao Plenário do Supremo Tribunal Federal é prova cabal de que não se podia invocar a colegialidade;
II) E a própria ministra Rosa Weber, dias antes, no recurso especial eleitoral 12486-27.2009.6.20.0000/RN, em face do pedido do Ministério Público Eleitoral de prisão de acusados, assim decidiu: “determino que se aguarde o encerramento da jurisdição deste Tribunal Superior para o início do cumprimento das penas impostas aos réus”. Isto foi no dia 20 de março de 2018. Significa que, na jurisdição eleitoral, ela submeteu a execução da decisão de segunda instância ao esgotamento da instância especial. Portanto, ela sufragou a tese intermediária defendida pelos ministros Gilmar Mendes e Dias Toffoli e pelo autor da ADC 43. Ou seja, a ministra Rosa Weber fez no recurso eleitoral o oposto do que fez no HC de Lula, com pouco mais de dez dias de diferença entre as decisões.
III) Afinal, o que é isso — a colegialidade? Quem julga HC é a turma. Se o plenário foi afetado pelo ministro Edson Fachin, é porque o STF não tinha posição fixada. Óbvio ululante;
IV) E, se não tinha posição fixada, o HC, no plenário, só poderia ser apreciado depois da questão prejudicial;
V) Consequentemente, a evocação da colegialidade foi equivocada;
VI) Conclusão: julgamento de HC no plenário só poderia ocorrer se antes fosse votada a questão constitucional constante nas duas ADCs;
VII) o julgamento do HC em plenário quebrou preceitos fundamentais, entre eles o da igualdade — porque o voto da ministra Rosa, decisivo, tratou de forma desigual idênticas situações por ela mesma julgadas — e do juízo natural do HC (e, fosse legítimo o per saltum, o HC não poderia ser julgado sem a análise anterior da questão prejudicial posta nas ADCs);
VIII) por isso, pode ser manejada, como remédio último e, aqui, subsidiário, a jurisdição constitucional para resolver o problema (afinal, se os réus do RN poderiam aguardar em liberdade até o julgamento final pelo TSE, por que, no caso Lula, o critério foi outro?). Qual seria o remédio? Não descartaria uma ADPF, em face da violação dos preceitos fundamentais e da ausência de outro remédio. Claro, um remédio subsidiário (e ADPF é isso) no caso de o STF não discutir — em plenário — as teses das ADCs.
Quem quiser parar por aqui, minha posição está posta. Para quem tem paciência, siga, porque quero convidar o leitor para um jogo de sete erros no Habeas Corpus 152.752.
1. O primeiro erro decorre do deslocamento do HC do seu juízo natural da turma para o Plenário. Já ali caberia uma ADPF porque foram violados vários preceitos fundamentais pela caneta do ministro Edson Fachin. Todavia, pôr em pauta no Plenário o julgamento de mérito do HC antes de se dar a discussão sobre as teses levantadas nas ADCs 43 e 44 foi a pior estratégia possível no sentido de um desgaste institucional. A discussão tornou-se esquizofrênica, uma vez que a tese da possibilidade do cumprimento de pena antecipado após esgotados os recursos no segundo grau de jurisdição é o fundamento da decisão do TRF-4 ao decretar a prisão do réu. E, pior, a partir de uma súmula (122) editada à revelia da própria posição do STF.
2. Intimamente conectado a esse fato está o segundo erro: o de separar a avaliação de mérito do HC da avaliação constitucional da tese objeto das referidas ADCs.
3. Adentremos no terceiro erro: decidir contra a concessão do habeas preventivo, sob a fundamentação de que “decido assim pois é como o Tribunal disse que deve ser, embora bem saiba que o Tribunal está errado”. Tudo em nome do “princípio [sic] da “colegialidade”. Uma grave afronta à integridade do Direito e ao próprio conceito de princípio. E a maior ironia disso tudo? Escrevi sobre isso com Peluso Meyer, mas repito aqui: a maior ironia disso tudo é fundamentar, justamente, uma afronta à integridade do Direito e ao próprio conceito de princípio com base no próprio Ronald Dworkin (!!!) como fez a Min. Rosa Weber.
4. O quarto erro foi considerar que os posicionamentos contrários à possibilidade de decretação da prisão após esgotados os recursos dentro da segunda instância estariam assentados tão somente a uma espécie de princípio de presunção da “não culpabilidade”. Isso é um reducionismo simplista dos posicionamentos como o que defendo, e uma absoluta desconsideração da base democrática que serve de alicerce à Constituição Federal. E por que o STF não enfrentou a literalidade do artigo 283 do CPP?
5. O quinto erro foi a utilização de argumentos de política, argumentos utilitário-consequencialistas. Poderia citar vários. O da impunidade foi o mais usado. A impunidade seria por culpa de garantias processuais? Digam isso pra os 750 mil presos nas masmorras medievais (o epíteto é do ex-Presidente do STF)? Outro foi o argumento do “elevador processual”. E o da “efetividade judicial”. Não adentrarei no mérito de cada um desses argumentos teleológicos. Cada um renderia um texto novo. Assim, limito-me a dizer o óbvio: que um juiz deve fundamentar com argumentos… jurídicos. Quem faz política é… político.
6. E por falar em “voz das ruas” e política: o sexto erro é a insistência no dualismo metodológico. No século XIX, falava-se que as Constituições eram folhas de papel. Havia uma realidade social que podia substituir as leis. Eram outros tempos. Hoje, em países como nosso, uma visão da realidade social para substituir a Constituição é uma temeridade. Por quê? Porque, assim, viramos uma espécie de democracia plebiscitária, e pior: um Judiciário plebiscitário. Duplamente problemático. Quer ver? Quando um ministro do Supremo diz “Eu tenho de atender ao anseio popular”, eu digo “Alto lá! Como V. Exa. afere isso? Tem uma pesquisa?”. E se existisse a pesquisa, paradoxalmente… o Judiciário nem precisaria existir. Se o anseio popular vale mais que a Constituição, caio num paradoxo: uma vez que eu consiga demonstrar esse tal de anseio popular, o Judiciário passa a ser inútil. Perdoem-me, mas o dualismo metodológico professado por alguns ministros do STF é autofágico. Autofágico e contraditório.
7. Last, but not least (já que o direito brasileiro só quer falar inglês…), o sétimo erro: a confusão que se faz entre prisão preventiva ou cautelar, e a prisão no cumprimento de um ato punitivo do Estado, nas vias penais. Ora, parece-me bastante óbvio que a Constituição não exige o trânsito para que se realize uma prisão. O réu pode, sim, muito bem ser preso em caráter cautelar se isso se mostrar necessário para manter a sanidade do ato processual. Todavia, para que um réu possa cumprir a pena, em decorrência de um ato ilícito, objeto de ação penal, existem elementos mais que devem estar presentes. Um elemento essencial é o da culpabilidade. E a Constituição é clara ao exigir o trânsito para que se possa fazer presente o elemento de culpa. De novo, falo o óbvio. Mas falar o óbvio é tristemente necessário em tempos nos quais dois mais dois é cinco, tempos nos quais onde se lê x o juiz pode dizer que é y.
Numa palavra final, repito: minha análise é jurídica. Porque sou jurista. Não sou político, cientista político e nem filósofo moral. Também não sou vidente, profeta, nem nada do gênero. Mas vou arriscar um prognóstico, se me permitem. Se a tese da execução antecipada voltar à mesa nas ADCs, penso que, em nome da colegialidade (sic), levando em conta o julgamento no TSE de antes do HC em tela, é possível que a ministra Rosa Weber venha a votar contraditoriamente com o que falou no julgamento do habeas. Paradoxalmente, ela foi pela colegialidade. Agora, receio que vá voltar atrás e juntar seu voto a uma nova colegialidade. Bom, para mim, colegialidade — no modo como está sendo tratada — não passa de álibi retórico para sustentar consensos ad hoc. Esperamos que a ministra nos mostre o contrário. Porque toda a comunidade jurídica tem certeza de que o HC somente foi negado por causa de uma colegialidade que não era colegialidade. Simples (e complicado) assim.
Bom, esse é meu prognóstico… embora eu torça ardente e fervorosamente contra ele (o meu prognóstico). Lembro, a propósito, do camarada Jacó em uma conhecida anedota sobre a URSS. Perguntado sobre sua posição acerca da questão judaico-soviética, o camarada disse, peremptoriamente, que pensava exatamente de acordo com o que Stalin dissera e que fora publicado no Pravda. Os emissários de Stalin insistiram e ele respondia sempre a mesma coisa. Até que lhe perguntaram: “— Mas você, camarada Jacó, não tem uma posição pessoal sobre o assunto”? Ele respondeu: “Tenho, mas sou radicalmente contra”!
Finalizo, mesmo, com uma frase do ministro Roberto Barroso, dita no julgamento recente em um caso envolvendo um ex-governador:
“O dia que a Constituição for o que os intérpretes quiserem independentemente do texto, nós vamos cair numa situação muito perigosa”.
Tem toda a razão, ministro. Toda!
Post scriptum: esta etapa do Direito está chegando ao fim. De consciência tranquila, fiz a minha parte: fui um dos subscritores da ADC 44 e escrevi todas as semanas invocando uma ortodoxia jurídico-legal-constitucional. Peleei muito. Mas não está morto quem peleia, se diz aqui no sul.
Lenio Luiz Streck é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito