A casa caiu

A insustentabilidade do mandato de Michel Temer abriu um debate nacional sobre o que fazer quando se consumar a esperada vacância do cargo de presidente da República. A casa caiu, e nem mesmo as forças que patrocinaram o afastamento de Dilma Rousseff, eleita por pequena margem de votos em 2014 e expulsa do poder num processo de impeachment desatinado, parecem dispostas a dar sobrevida a um governo que acumula índices impressionantes de rejeição [*]. Temer é uma carta quase fora do baralho, e a pergunta que fica é: o que virá na sequência?

 

A vacância e a Constituição

Mesmo para aqueles que procuram respostas nos limites da ordem jurídica, interpretar os acontecimentos recentes não está fácil. A Constituição em vigor determina, em seu artigo 81, § 1º, que, “vagando os cargos de presidente e vice-presidente da República, far-se-á eleição noventa dias depois de aberta a última vaga”. É provável que Temer, quando se afastar das funções que usurpou, escorraçado por seus antigos aliados de Congresso ou por decisões judiciais supremas, leia o dispositivo constitucional, portador de uma mesóclise zombeteira, com um quê de ressentimento e tristeza. O seu reinado, afinal, terá sido mais breve do que imaginava. Como a vacância se dará “nos dois últimos anos do período presidencial”, diz o § 1º daquele artigo que “a eleição para ambos os cargos [presidente e vice] será feita trinta dias depois da última vaga, pelo Congresso Nacional […]”.

Tem-se, aí, um preceito constitucional que depende de regulamentação para produzir efeitos, circunstância que explica por que o seu texto termina com a expressão “na forma da lei”. A doutrina é tranquila quanto ao sentido desse comando. É que “determinados mandamentos constitucionais são completos e plenos, i.e., independem de leis complementares, suplementares e orgânicas que permitam a sua aplicação imediata, enquanto que outros […] [devem] ser completados por leis ulteriores, que permitam apreciar o momento da sua incidência, a sua extensão e amplitude, as condições de sua operatividade e os limites alcançados” (FERREIRA, 1977: 163). Não resta dúvida de que o § 1º do artigo 81 se enquadra na segunda entre as categorias descritas, possuindo, conforme Silva (2012: 98), eficácia contida.

 

Qual lei?

Alguns juízos apressados afirmam que a alternativa para o vácuo de poder que se anuncia está na convocação de eleições indiretas, “na forma da lei”. Qual lei? Como não existe regulamentação da matéria sob o ordenamento em vigor, busca-se socorro no passado, mais precisamente em 7 de abril de 1964, quando a ditadura militar que se consolidava sancionou a Lei nº 4321, que dispôs sobre “a eleição, pelo Congresso Nacional, do presidente e [do] vice-presidente da República” – o que se queria, naquele abril nebuloso, era legitimar a quartelada que depôs o então presidente João Goulart. Pois é esse diploma normativo de origem antidemocrática que aparece como salvação agora, em meio a uma crise institucional gravíssima. As intenções dos adeptos dessa via – a banca financeira e seus agentes – são fáceis de identificar. A pretexto de manter uma “governabilidade” que convenha aos seus interesses, eles propõem a revogação tácita do artigo 14 da Constituição, que afirma que “a soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos […]”. Assim, calculam, tudo continuará como está – ou como sempre foi.

 

Um consenso falso

Para a definição do mecanismo de escolha do novo governo, os pressupostos constitucionais deveriam bastar. Não é o que acontece, todavia. Já faz algum tempo que grandes veículos de comunicação, propriedades de famílias conhecidas por sonegar impostos e sugar recursos públicos, vêm manipulando fatos, atribuindo-lhes contornos absurdos, criminalizando expressões democráticas de movimentos sociais, promovendo golpes de Estado, bajulando ditadores ou simplesmente mentindo. Eles formam uma das principais bases de apoio às reformas da Previdência e trabalhista que estão no Congresso, no rastro de um pacote de “austeridade” votado há menos de um ano e cuja aplicação lançará o País num retrocesso de duas décadas ou mais. Reformas antipopulares, alardeadas pelos caciques da mídia como caminho único para a recuperação econômica de uma sociedade em transe, mas que, na verdade, ameaçam condenar milhões de trabalhadores ao subemprego e à exploração bizarra. O falso consenso em torno disso tudo ignora a “soberania popular” consagrada pelo artigo 14 da Constituição. Trata-se de um consenso encomendado para que os donos do poder, para quem o “povo”, com seus hábitos desagradáveis, não passa de detalhe incômodo, imponham um arranjo capaz de assegurar a integridade do seu projeto.

 

Efervescência política: em 1984, nas ruas das grandes cidades, milhões de pessoas exigiram eleições diretas no País, um grito que viria a se repetir em 2017, no auge da crise da democracia brasileira

 

Uma questão política

Eis o contexto da sucessão presidencial que se avizinha. Mais do que uma questão jurídica, a disputa é política. Articulações parlamentares contaminadas por denúncias de corrupção e pela falta de legitimidade dos seus atores não poderão contribuir para que o País saia da encrenca em que se meteu. Neste momento, o Congresso Nacional não está autorizado a decidir em nome da população, a votar por ela, a se pronunciar em nome dela. As instituições apodreceram, e a convocação de eleições gerais – ou a reedição ampliada das “Diretas já”, campanha que marcou a agonia do regime militar, na primeira metade da década de 1980 –, com base em emenda constitucional, é uma alternativa a ser considerada, por mais complexa que seja. Uma alternativa que somente se realizará se deputados, senadores e outras figuras da mesma linhagem ética perceberem que existe vida fora dos palácios, traduzida em protestos contundentes de milhões de pessoas. Algo que incomode os articuladores das reformas, pois são elas, as reformas, que precisam ocupar o debate nacional, democraticamente e sem personalismos. Nada melhor, para que isso aconteça, do que uma disputa de projetos para o País, algo que não aconteceu nos pleitos mais recentes, desfigurados pelo controle absoluto do poder econômico.

Eleições gerais, portanto, para cumprir a Constituição, barrar o desmanche da Previdência pública, preservar diretos trabalhistas e antecipar a reforma que é essencial: a política.

 

 

[*] Vários institutos de opinião constataram a falta de confiança da população em Michel Temer. Os índices de aprovação são baixíssimos, e chegaram a registrar que apenas 4% entre os entrevistados consideram o governo ótimo ou bom. Isso no final de abril deste ano. Segundo o portal UOL, que divulgou pesquisa do Instituto Ipsos, a rejeição foi constatada no ‘período de debate mais intenso sobre as propostas de reforma trabalhista e da Previdência […]’ (cf. <https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/ bbc/2017/04/26/aprovacao-de-temer-cai-a-4-92-veem-pais-no-rumo-errado.htm>. Acesso em 7/6/17).

 

Nota do autor: Este artigo é de responsabilidade minha, exclusivamente, sem pretensão de impor nenhuma linha editorial à página da Assejur, que se baseia na pluralidade de opiniões. Aos que discordam de mim, peço que tenham paciência. Será necessário um pouco mais, apenas.

 


REFERÊNCIAS

FERREIRA, Pinto. Eficácia (Direito constitucional). In: FRANÇA, R. Limongi (Coord). Enciclopédia Saraiva do Direito. São Paulo, Saraiva, 1977. vol. 30. p. 155-183.

SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 8. ed. São Paulo : Malheiros, 2012.