É uma desgraçada tradição brasileira: o governo, quando age, age mal e tarde demais. No caso das apostas online, recorro à escrita de Juca Kfouri, transcrita aqui mesmo no Zé Beto: “Michel Temer abriu as portas para a jogatina em dezembro de 2018, Jair Bolsonaro permitiu a festa sem limites durante quatro longos anos e quando o governo Lula, seis anos depois, a regulamentou, para entrar em vigor em janeiro de 2025, era tarde: o Brasil já tinha virado um imenso cassino, a banca regurgitava sem saber onde lavaria tanto ervanário e havia no ar muito mais que aviões de carreira”. Mais: “Enquanto comunicadores, atletas, ex-atletas e treinadores colaboravam, por mera ganância, para enganar sem o menor constrangimento seus ingênuos e ignorantes fãs, o brasileiro apostava o que não tinha em busca da prosperidade fácil”.
E aí a Folha de S.Paulo revelou que “em agosto, os beneficiários do Bolsa Família […] gastaram R$ 3 bilhões em bets via Pix, segundo uma análise feita pelo Banco Central”. Voltemos ao Juca: “Dos 20 milhões de beneficiários [do Bolsa Família], 5 milhões fizeram apostas no mês passado [em agosto]. Na mediana, o valor gasto por pessoa foi de R$ 100. Desse total de apostadores, 70% são chefes de família, ou seja, quem de fato recebe o dinheiro transferido pelo governo”. Aí o governo de Luiz Inácio levou um susto: “Estamos percebendo no Brasil o endividamento das pessoas mais pobres tentando ganhar dinheiro, fazendo aposta” – proclamou Lula, emendando: “É um problema que vamos ter que regular, senão daqui a pouco vamos ter cassino funcionando da cozinha de cada casa”.
Daqui a pouco, companheiro?! Os cassinos já estão funcionando a todo vapor. E o ministro do Esporte tem o desplante de dizer que é preciso separar o joio do trigo, “pois existe o jogo bom e o jogo ruim”. Com a devida vênia, excelência. O jogo, sobretudo as avassaladoras apostas online, é sempre ruim. Bom só para a banca. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, teve mais consciência ao afirmar que os jogos viraram um problema social grave. Mas não foi capaz de sugerir a proibição da deplorável prática. Agora, ameaça cancelar 600 sites de apostas. Por ora, foram apenas cento e poucos. Há, porém, cerca de 2.000 em ação.
Aliás, os partidos da base aliada de Luiz Inácio votaram em peso a favor da regulamentação das apostas online. Agora, a presidente do PT, Gleisi Hoffmann tem o descaramento de confessar que “subestimamos os efeitos nocivos e devastadores sobre o que isso causa à população brasileira”. E faz um mea culpa público: “É como se a gente tivesse aberto as portas do inferno, não tínhamos noção do que isso poderia causar”. Ah, é, excelência?! Tarde piaste. Mas ainda há tempo de corrigir a desgraça, impedindo que ela prossiga e se amplie. Basta que o companheiro-presidente, em vez de regularizar a tragédia, vete-a, proibindo, inclusive, a publicidade e a propagação do vício.
A propósito, a dependência de jogos de azar já é a terceira maior do mundo, superada apenas pelos vícios do tabaco e do álcool, e o Brasil já ultrapassou a Grã-Bretanha, sendo o país onde mais se joga no mundo. Quer dizer, no entendimento do pesquisador Edilson Braga, do ambulatório de jogos do Hospital das Clínicas de São Paulo, “estamos sentados em uma bomba-relógio”. Argumenta o especialista que, uma vez instalada a dependência, “pouco importa se o jogador vai ganhar ou perder” […], “é a fissura pelo jogo, por apostar”. Aí, não existe mais controle. Edilson Braga avalia que o vício em apostas é um mal que já se instalou na sociedade, e que a regulamentação somente reduziria os danos. E sustenta que a propaganda dos bets deveria ser banida, pois, em um piscar de olhos, todo o patrimônio de vida de uma pessoa vai embora.
Isso pouco importa aos promotores das apostas. Hoje, como se sabe, a promoção dos tais bets domina os estádios, os clubes, as camisas do atletas e até as emissoras de rádio e TVs, encarregadas das transmissões esportivas. É um inferno, como bem diz a presidente do PT, absolutamente sem controle. Tanto é que cassinos de Las Vegas já estão abrindo bets no Brasil, de olho no jogo presencial. E as redes Globo e SBT procuram brechas na regulação para também entrar no mercado.
Ainda uma vez, Juca Kfouri: “Quem tem olhos para ver cansou de avisar que a jogatina inundaria o Brasil, que resultados de jogos seriam manipulados, que os espertalhões de sempre ganhariam rios de dinheiro e que aquilo que o governo arrecadaria com impostos seria gasto no atendimento aos viciados”.
Célio Heitor Guimarães é jornalista e consultor jurídico aposentado.