Certa vez, Millôr Fernandes saiu-se com essa frase: “Depois de perder o bonde e a esperança, perdemos também o trem e a vergonha, o navio e o espírito público, o jato e a capacidade de indignação”. De fato, se indignar, em nosso tempo, virou peça de museu. Ou até motivo para ser cancelado nas redes sociais (leia-se Moderna Inquisição).

Em vez de praticar cross fit, venho procurando fortalecer os músculos que me provocam raiva. Em várias áreas, diga-se, mas hoje falarei sobre gastronomia.

Quando passei a me entender como gente, para início de conversa, não usávamos esta palavrinha. No máximo, era culinária. E, olhe lá, por vezes era “a comida de fulano” ou “os pratos de sicrano”. Depois que a tal gastronomia entrou na conversa corrente, começou o pedantismo. Agora estamos diante de uma empáfia nos bares e restaurantes que chega a intoxicar o fígado. Eu mesmo tenho preferido comer em domicílio a presenciar certas afetações. Dou um exemplo: se o garçom diz que o molho é uma redução, meu apetite já se reduz na hora. E a cavaquinha? Agora, tudo é cavaquinha, e não me refiro aos shows do pagodeiro Mumuzinho.

Foi num instante encolerizado assim que me lembrei daquele restaurante do consultor de vinhos Carlos Cabral, em São Paulo. Ficava na sobreloja de uma loja de vinhos, nos Jardins, e só servia bacalhau. Apenas umas três receitas do peixe. E o espaço devia ter, se muito, seis mesas. Era o suficiente para agradar gregos e lusitanos. Ao entrar no térreo do estabelecimento, o cliente elegia sua garrafa nas prateleiras e subia aos domínios de seu Cabral. Ali, ouvia as particularidades de cada receita e era só esperar para se regalar. Nada de retrogostos, chiffonade, bisque e… cavaquinha.

Por outro lado, seu Cabral podia não contar com os maneirismos desses chefs millenials, mas era bastante minucioso. E, se me permitem uma rima infame: cabal no bacalhau.

O melhor de tudo, porém, era o pós-almoço. Antes da “bica”, lá vinha o homem com uma garrafinha de Porto. Na última vez em que estive na casa, lembro-me de uma de suas histórias. Quando fui pegar a taça, ele me disse:

— Vai tomar com a mão direita ou a esquerda?

Fiquei embatucado com a pergunta, assim, de chofre. Seu Cabral então demonstrou todo seu conhecimento:

— Tome com a mão que quiser. Mas, no tempo de El-Rei, na távola dos nobres de Portugal, tomava-se o Porto somente com a esquerda. E a razão era simples: a destra precisava ficar livre para, em alguma circunstância emergencial, poder puxar o punhal da bainha.

Quando hoje me irrito com a pretensão das tascas contemporâneas, é porque tive o privilégio de conhecer cozinhas de grande simplicidade, mas sem nenhum simplismo, exatamente como a do seu Cabral.