Denário do sonho é um romance esplêndido de Marguerite Yourcenar (1903-1987) publicado em 1934 e que teve muitas partes refeitas para republicação em 1959. A narrativa é ambientada na época da ditadura fascista italiana (governo de Benito Mussolini) e da valorosa oposição a esse sistema despótico. Mas não encontramos aqui um enaltecimento desmedido das personagens antifascistas. Não há maniqueísmos, mas também não há relativizações em relação ao caráter despótico daquele regime perverso. Da mesma forma, também não encontramos idealizações das pessoas do povo, muitas das quais se mostram favoráveis ao governo, que se reveste duma aura de sacralidade aos olhos mais simplórios.

Podemos dizer que Yourcenar captou bem a forma de pensamento dos conservadores pobres, pessoas arraigadas a hábitos de obediência encrustados em suas mentes desde a infância. Na década de 2020 no Brasil, quando escrevo este texto, é visível o apoio que pessoas religiosas deram ao neofascismo empresarial-militar que ocupou a presidência da república de 2019 a 2022. O importante era ser “bonzinho”, ou seja: obediente a deus, pátria, família, tradição, propriedade e a tudo que os chefes mandarem, por mais irracional ou assassino que seja. Nada disso é muito diferente do que é mostrado no livro dessa magistral escritora, que descortina para nós as mentes das pessoas por quem passa uma moeda de um denário (que dá título à obra).

Para isso, a autora faz uma utilização muito competente do discurso indireto livre, mostrando a psicologia das personagens duma forma bastante natural. O texto é fluido apesar do tema pesado (o romance tem como centro uma tentativa de assassinar o ditador-mor, empreendida por uma antifascista, após a prisão dum outro militante opositor ao regime).

Mais do que tratar simplesmente de política, o texto nos fala da vida. Vemos personagens do povo defenderem valores que, no fundo, são contrários a elas. Entendemos, no entanto, que, quando se trabalha a maior parte do dia sem tempo para refletir sobre nada, é realmente quase impossível desenvolver senso crítico. E ser crítico, afinal, se mostra perigoso, então por que se aproximar de ideias que podem trazer ainda mais problemas? Já não bastam os problemas que a própria pobreza traz?

E quem abraça o antifascismo abrindo mão da tranquilidade duma vida confortável? Seria loucura? Ou loucura é viver como um certo personagem cirurgião célebre, cheio de riqueza, mas forçado a fechar os olhos para todo o horror perpetrado pelo fascismo?

Estudos de História, por mais competentes que sejam, não são capazes de nos mostrar o que se passa na mente de quem comete um atentado contra um ditador. Nem podem iluminar o que se passa na cabeça dum burguês conivente com o despotismo. Nem também os pensamentos dum triste trabalhador que se embriaga, sonhando fugir duma realidade insuportável. Isso tudo só quem consegue mostrar é a arte. E a arte de Marguerite Yourcenar nos dá esse complemento de compreensão sobre momentos históricos que a Filosofia e a Sociologia, sozinhas, igualmente não alcançam.

 

Winter Bastos é servidor do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.