Greves existem e são reconhecidas como direito dos trabalhadores em quase todo o mundo. Nem sempre foi assim. Antes que os ordenamentos jurídicos nacionais incorporassem a legitimidade desse instrumento de luta, manifestações contrárias aos interesses dos detentores do poder eram proibidas. Mas elas não deixaram de acontecer, notadamente a partir da organização dos operários dos centros industriais, cansados de viver na miséria e sob as ordens de patrões que agiam protegidos pelo aparelho repressivo do Estado. Isso há mais de cem anos.
Não foi a caridade de um punhado de aristocratas e proprietários que afirmou a greve como direito. Ao contrário, eles, os aristocratas e proprietários do início do século passado (ou do final do século XIX), foram pressionados a aceitar algumas das condições reivindicadas pelos trabalhadores cujo suor extraíam para além dos limites humanos. Com o crescente protagonismo dos sindicatos nascidos nas fábricas, restou aos velhos mandatários a saída clássica: entregar os anéis para salvar os dedos. Em outras palavras, oferecer, sem abrir mão da sua riqueza e dos seus privilégios, condições mínimas de dignidade a uma massa de operários que começava a se enxergar como classe social revolucionária, disposta a aniquilar o “sistema”. Em seguida, num movimento espontâneo, a aristocracia cuidou de recuperar seus adereços. Conseguiu, utilizando-se de mecanismos de cooptação de lideranças políticas e desenvolvimento de técnicas “modernas” de exploração de mão-de-obra barata.
Votos negociados no Congresso
No Congresso Nacional do Brasil contemporâneo, o grande tema em debate é justamente o custo da mão-de-obra. Embalados pelo discurso da retomada do crescimento econômico, deputados e senadores negociam seus votos em troca da aprovação de reformas que têm como ponto central a retirada de direitos trabalhistas e previdenciários de milhões de pessoas. Tudo para oferecer segurança jurídica a um empresariado e a uma casta de banqueiros que não querem pagar tributos nem assumir compromissos determinados em leis de conteúdo social.
Previsivelmente, a população não está convencida da eficácia das reformas. Ainda que os grandes meios de comunicação se dediquem a repetir como mantra a tese governista de que a Previdência faliu e a legislação do trabalho é responsável pelos índices elevados de desemprego no País – e que, por isso, as medidas de austeridade são inevitáveis –, o andar de baixo não dá sinais de que aceitará pagar (mais) uma conta que não é sua. Pesquisas recentes [1] mostram que Michel Temer, o presidente sem votos, não é reconhecido como liderança confiável, assim como os políticos aboletados no Congresso experimentam um desprestígio mastodôntico e aparentemente irreversível. Se as instituições se afogaram num lodaçal de corrupção, não seria razoável esperar que os usuários de serviços estatais, os pobres massacrados pela violência policial, pela falta de moradia, de saúde e educação pública, aceitassem, bovinamente, a eliminação do que lhes resta de direitos.
O dia em que tudo parou
Foi nesse contexto que entidades sindicais e movimentos populares realizaram, no dia 28 de abril, uma greve nacional. Ao que tudo indica, tratou-se da maior paralisação já ocorrida no País. Concretamente, nada funcionou. Pararam o transporte coletivo, o comércio, a indústria e os prestadores de serviços. Mas, para a moribunda imprensa brasileira, o protesto foi uma derrota de sindicalistas enlouquecidos, reduzindo-se a atos de intimidação a uma maioria de inocentes úteis – os brasileiros “de bem”.
Nada surpreende nessa “leitura” distorcida dos fatos. Há muito tempo os meios de comunicação de massa, transformados em panfletos de uma elite retrógrada, culturalmente medíocre e perversa, deixaram de informar. Para quem desejasse saber o que aconteceu naquela sexta-feira em que dezenas de milhões de trabalhadores cruzaram os braços, a alternativa estava nas redes sociais. Ou na cobertura da mídia internacional [2], que teve o cuidado de abordar as razões dos protestos, a pauta defendida pelos manifestantes e a crise política que toma conta do Brasil.
Por aqui, as televisões destacaram imagens de terminais de ônibus e metrô vazios e duas ou três cenas de conflitos de rua. Os terminais vazios seriam a demonstração de que os “verdadeiros” trabalhadores não aderiram à greve, e os conflitos comprovariam a tese de que o movimento é incapaz de se curvar às regras da democracia. Essa estrutura analítica levou comentaristas – profissionais ou de ocasião – a conclusões fantásticas. Alguns se colocaram como porta-vozes da população, afirmando, com base apenas em suas preferências ideológicas, que greve não houve. Segundo eles, o que se viu no dia em que o Brasil parou foram pessoas que não conseguiram chegar aos seus locais de trabalho, tolhidas do seu direito de ir e vir. Outros reclamaram da insensibilidade dos manifestantes, que não tiveram o zelo de chamar a paralisação para o feriado de 1º de Maio… E foi por aí, numa sucessão impressionante de disparates.
Paralisação não é crime
Goste-se ou não, a greve, um direito inerente à atividade do trabalhador, significa a ruptura provisória da estabilidade. Não há greve sem perturbação do cotidiano, sem prejuízos a empresários, comerciantes ou cidadãos comuns, sem desgastes de tipos variados. O que não quer dizer que paralisação seja crime. Já foi, em tempos obscuros e tristes, mas deixou de ser no curso de um longo processo histórico que não convém desprezar. Chamar grevistas de vagabundos, como fazem os saudosistas de regimes de força, não deveria combinar com a “modernidade” propalada pelas reformas, embora tenha tudo a ver com ela.
Como era de se esperar, os atos de 28 de abril, isoladamente, não resolveram a controvérsia que os impulsionou. Nem sequer superaram a crise de representação que atinge o sindicalismo. Todavia, eles reuniram méritos incontestáveis. Foram manifestações de sindicatos, sim, porque assembleias de sindicatos é que deflagram greves. Paralisaram atividades importantes para a população, e esse é o objetivo principal de uma greve. Expressaram a resistência de milhões de trabalhadores que não aceitam que seus direitos sejam esmagados para satisfazer interesses do capital. Pesquisas de grandes institutos dizem isso. As marchas que se reproduziram no 1º de Maio, também.
Por mais que não admita publicamente, o governo sabe que a greve foi um acontecimento relevante [3]. Da mesma forma, os trabalhadores estão conscientes de que a defesa da Previdência e da legislação social trazida pela Constituição de 1988 não terá nenhuma chance de prosperar se depender apenas do Congresso. Lá, o jogo já está decidido. O que pode inibir a “convicção” dos parlamentares ilustres é o fortalecimento das mobilizações, a sequência da greve geral. Para barrar as reformas, o Brasil precisa cruzar os braços e refletir sobre a barbárie que ameaça o seu povo.
INDICAÇÕES
[1] Sobre pesquisas recentes que avaliaram a popularidade do governo Temer e a aprovação às reformas encaminhadas ao Congresso Nacional, verificar as seguintes matérias
– A popularidade de Temer
– Reprovação a Temer dispara, popularidade despenca
– Vox Populi: 93% são contra reforma da Previdência; aprovação de Temer cai a 5%
[2] Sobre a repercussão internacional da greve do dia 28 de abril
– Greve geral e manifestações: o que diz a imprensa internacional
– Mídia internacional repercute greve geral contra reformas do governo Temer
– Schiopero generale contro la riforma del lavoro, il primo dopo 20 anni
– Brazilians sick of corrupt politicians hit the streets to protesto atusterity measures
[3] Sobre avaliações internas do governo após as paralisações do dia 28 de abril
– Nos bastidores, governo acha que greve foi expressiva