A tragédia irracional que se abate, no momento, sobre o Oriente Médio, envolvendo povos irmãos, ambos descendentes do profeta Abraão, remeteu-me, com saudade, a dois bons amigos – um filho de sírio-libaneses, indevidamente chamados “turcos”; outro de judeus – que, infelizmente, já nos deixaram.

O primeiro deles chamava-se José Tadeu Saliba, que viria a ser advogado, mas fora excelente narrador de futebol, torcedor apaixonado pelo esporte (era atleticano, no Paraná; corintiano, em São Paulo; e vascaíno, no Rio, num tempo em que se torcia por um time de cada Estado). Tadeu foi o meu primeiro amigo, aquele do qual jamais se esquece, ainda que o tempo passe e a vida nos separe. Crescemos juntos e vivemos os melhores anos de nossas vidas numa Araucária tão provinciana quanto acolhedora; de poucas ambições, mas muita cordialidade; de gente comum e ordeira, vizinhos fraternos que não existem mais. Juntos, partilhamos ideias, embalamos sonhos e inventamos moda. Era um convívio diário, de grande afinidade, que começava cedo, nas viagens de ônibus para os colégios, em Curitiba, e terminava no campinho de futebol próximo à casa dele, em peladas que iam até o escurecer, ou em torneios de tamborete, no meio da rua, em frente à loja de tecidos e armarinhos de “seu” Michel, pai de Tadeu.

Nossos heróis estavam nas páginas dos gibis, nos seriados e nos mocinhos & bandidos do velho Cine Império (a TV era ainda um sonho inimaginável) e na equipe do Araucária Futebol Clube. Depois, fomos para o rádio e, ainda juntos, ingressamos na Faculdade de Direito da UFPR. Juntos – com Maria Marta, irmã de Tadeu, e Renato Nascimento –, ainda fizemos, no final dos anos 50, o primeiro jornal araucariense, o minúsculo “A Voz de Araucária”. Quando vim para Curitiba, Tadeu ficou na Araucária que tanto amava. Ali fez carreira, constituiu família e foi prefeito – o mais jovem que o município teve, com pouco mais de 30 anos de idade – e deu início à mudança da cidade, arredando-a da vocação agrícola para dar-lhe ares de centro industrial. Quando o mandato terminou, voltou-se por inteiro à advocacia, que exerceu sempre com entusiasmo e paixão. No mais, como disse Maria Marta, “um paizão, propenso a abrigar o mundo inteiro no colo”. Nunca imaginei que José Tadeu fosse embora tão cedo. Mas acho que parte dele já havia morrido, em 1995, quando a tragédia do edifício Continental, em Guaratuba, tirou-lhe, no mesmo golpe, não apenas um filho, mas também a mãe, duas irmãs, dois sobrinhos e um cunhado.

O segundo amigo referido no início deste texto foi Jaime Stivelberg. Mais do que um competente advogado, estimado e respeitado no foro curitibano, Jaime era um ser humano excepcional, que tinha um talento especial para fazer amigos. Quando Romeu Felipe Bacellar Filho deixou a administração pública para dedicar-se à advocacia, Jaime Stivelberg abriu-lhe espaço em seu tradicional escritório. Algum tempo depois, quando Romeu convidou-me para auxiliá-lo na nova jornada, fui recebido por Jaime como se fosse um veterano. Não me conhecia, mas o fato de haver sido chamado por Romeu Felipe, a quem ele admirava e respeitava, foi-lhe o suficiente. JS era um homem gentil, cordial, emotivo e com um profundo sentimento humanitário. Tanto que logo passou a considerar-me “um irmão”.

– Eu sou como você, Célio – costumava dizer-me, como se eu pudesse servir de referência. “Não consigo esconder sentimento. Quando não gosto de alguém, vou logo dizendo, sem nenhum constrangimento”. E emendava: “Com certeza fomos irmãos numa encarnação passada”. Quer dizer, um judeu que acreditava no espiritismo.

Nos últimos tempos, Jaime Stivelberg, que chegou a ser juiz do Tribunal Regional Eleitoral, dizia-se cansado da profissão, mesmo antes dos sinais do mal que o consumiria. Mas jamais deixou de comparecer ao seu gabinete de trabalho, no Edifício José Loureiro, na Rua XV de Novembro. Da mesma forma que enfrentou com galhardia os sobressaltos, as dores e as tristezas da caminhada, sem nunca desviar-se da rota inicial. Foi assim até o fim. E como o desembargador Aurélio Feijó, uma de suas principais referências, procurou em vida conciliar a profissão com o coração. Foi um profissional exemplar. Era um homem franco, sem ser rude; amava o chiste, sem perder o respeito; e não perdia a oportunidade de rir – ainda que (ou principalmente quando) a piada tivesse como personagens os descendentes de Abraão, entre os quais ele se incluía.

Não sei se Tadeu e Jaime se conheceram. Acredito que não, embora exercessem a mesma profissão. Se tivessem se conhecido, certamente seriam amigos. Apesar da diferença de etnias. Ou talvez por isso mesmo.

De José Tadeu e de Jaime, restou-me a lembrança e a saudade. E, quando isso acontece, como dizia Rubem Alves, inspirado em Guimarães Rosa, não é parte do passado. É sempre presente.

 

Célio Heitor Guimarães é jornalista e consultor jurídico aposentado.