Érico Veríssimo: ‘a reforma mais urgente é a do caráter’ (foto: divulgação / Companhia das Letras)

 

Todo começo de governo é a mesma coisa. Vêm à baila as reformas. É reforma política, reforma econômica, reforma trabalhista, reforma social, reforma fiscal. Tudo balela, para ganhar tempo e enganar a patuleia. No Brasil, todo mundo fala em reformas, mas ninguém as quer de verdade. Sabe quando se fará reforma no Brasil, leitor? Mas reforma-reforma mesmo, para beneficiar a população? Nunca. Político não faz reforma. Administrador, menos ainda. Só se lhes trouxer benefício pessoal. Pois o tema está novamente na ordem do dia. Aliás, sempre esteve e sempre estará. Sem nenhum resultado real, como se verá.

Aí, uma vez mais, lembro-me do grande Érico Veríssimo, pai do Luís Fernando e uma das figuras maiúsculas deste país, que muita falta nos faz. Érico não foi só um escritor. Ou “um contador de estórias, fascinado pelas pessoas e pelos problemas humanos” – como se autodefinia. Ele era isso e muito mais. Érico Veríssimo foi, sobretudo, um humanista. Jamais transformou seus romances em panfletos políticos, mas poucos intelectuais foram capazes, como ele, de se manifestar publicamente, com tanta firmeza e intransigência, contra os desmandos dos poderosos. A supressão das liberdades, a institucionalização da mentira e da violência política e a repressão aos dissidentes sempre lhe causaram repugnância. Aliás, em vida, confessava ter apenas um medo: o de perder a capacidade de indignação e cair na aceitação, que julgava perniciosa para a vida em sociedade.

Dizia: — Não quero ser indiferente. Dentro de mim ouço sempre meu grito de indignação. Quando choro pelo outro, estou chorando por mim. Quando tenho receio pelo outro, tenho também por mim. Não sou santo, sou homem.

Modestamente, tenho procurado mirar-me em Érico. Como pessoa e como crítico do cotidiano. Aprendi com ele – que foi capaz de desagradar, ao mesmo tempo, a direita, a esquerda, a igreja e os poderosos de plantão – que é sempre necessário expor publicamente as mazelas e a hipocrisia das classes dominantes, preocupadas, pobrezinhas!, em manter o poder e o lucro; do mesmo modo que personagens esquerdistas são, em regra, apenas tristes criaturas, retorcidas e complicadas demais para servirem de vetores para um mundo novo. Prova disso tem-se quando conseguem alcançar certo destaque na vida político-administrativa do país.

— O mundo capitalista está podre – acentuava Érico, acrescentando, no mesmo tom: “Mas o mundo bolchevista, que nasceu em meio a tantas promessas e esperanças, também já se deteriorou”. Coisas tão atuais, ditas por Érico Veríssimo há mais de sessenta anos.

E as tais reformas, apregoadas, anos a fio, por reiterados governos, inclusive pelo atual? O diagnóstico do escritor é perfeito:

“As reformas são necessárias, mas só solucionarão os nossos problemas econômicos e sociais se forem planificadas e realizadas a sério, por gente competente e honesta. Quanto à reforma básica mais urgente, a meu ver, é a reforma do caráter. Isso não é apenas uma frase. Ora, como não acredito em milagres, acho que, com essa gente que até hoje nos tem governado, não é possível reformar nada a não ser promissórias. A reforma agrária é, em princípio, um imperativo de ordem moral. Mas não conseguiremos nada nesse terreno sem a uma planificação bem feita. Pouco, nada mesmo, adiantaria ao homem do campo ter uma terra em seu nome se ele correr o risco de morrer de fome em cima dela. Claro que é preciso começar, e o melhor momento é reconhecer a necessidade dessa reforma, votar uma lei que a legitime e a torne mandatória e ir estudando os meios de pô-la em prática, mas sem açodamento, sem ódios políticos e ideologias e sem perder de vista o fato de querermos resolver um grande problema e não criar outros… É uma tarefa para homens de capacidade técnica e administrativa, e não para demagogos. Mas apenas a reforma agrária não solucionará nossos problemas. Temos que acabar com a ‘espoliação por causas internas’, como o empreguismo, a roubalheira pura e simples, a malversação dos fundos públicos, o desgoverno, os contratos lesivos à nação, feitos em benefício de grupos econômicos. Se há uma hemorragia externa que nos debilita, a hemorragia interna não é melhor. […] Enquanto, porém, tivermos no governo homens de negócios e não estadistas, não vejo nenhuma esperança de melhores dias para a economia nacional”.

Sabe, o prezado leitor, quando o sábio Érico Veríssimo disse isto? Em meados de 1963…

 

Célio Heitor Guimarães é jornalista e consultor jurídico aposentado.