Kenarik Boujikian: apresentação de powerpoint está no contexto da dinâmica de produção do próprio inimigo (foto: reprodução)

 

O Superior Tribunal de Justiça, por sua 4ª Turma, em decisão datada de 23/2, julgou o Recurso Especial 1.842.613, proposto pelo ex-presidente Lula, e condenou Deltan Dallagnol, ex-procurador da República, coordenador à época dos fatos da chamada operação “lava jato” no âmbito do Ministério Público Federal, ao pagamento de indenização, por ter acarretado danos morais.

O fato indicado no pedido diz respeito aos atos praticados pelo ex-procurador durante uma entrevista coletiva transmitida ao vivo, convocada para ser realizada em um hotel, em setembro de 2016, durante a qual  houve a exibição de um powerpoint que ficou amplamente conhecido da população através da imprensa nacional e internacional.

Na entrevista, na qual estavam presentes outros procuradores e policiais federais, Deltan apresentou conteúdo ofensivo contra o presidente Lula, seja por meio das mensagens contidas nos círculos do programa de computador, que convergiam por setas para a figura central de Lula, seja pelo que verbalizou, naquela oportunidade.

Esse é um dos capítulos que mostram como o lawfere foi exercitado aqui no Brasil e o quanto é danoso para o sistema democrático, quando os agentes de Estado distorcem suas funções. Igualmente, nos mostra como é essencial repudiar e impedir os julgamentos midiáticos. Papa Francisco apontou esses males, em algumas oportunidades. Pude ouvir diretamente dele, no Congresso da Cúpula Panamericana de Juízes sobre Direitos Sociais e Doutrina Franciscana, convocado pelo Vaticano, realizado no dia 4/6/2019 e que tinha juízes de vários países como público:

Aproveito esta oportunidade de me encontrar convosco para vos manifestar a minha preocupação por uma nova forma de intervenção exógena nos cenários políticos dos países, através do uso indevido de procedimentos legais e tipificações judiciais. Além de pôr em grave perigo a democracia dos países, geralmente o lawfare é utilizado para minar os processos políticos emergentes e tende para a violação sistemática dos direitos sociais. Para garantir a qualidade institucional dos Estados, é fundamental relevar e neutralizar esse tipo de práticas que derivam da atividade jurídica imprópria, em combinação com operações multimidiáticas paralelas. Não me detenho a propósito deste ponto, mas todos nós conhecemos o juízo mediático prévio  (negritos meus).

Ressalto que a lide foi bem delimitada pelo ministro relator, que indicou que o ponto era exclusivamente identificar se na entrevista, na qual  houve a apresentação do powerpoint,  houve abuso no poder de narrar a denúncia, se ele agiu com excesso ou dentro da normalidade; se Deltan extrapolou e se essa conduta causou dano moral, ao ferir os direitos da personalidade e direitos fundamentais. A decisão do STJ foi que o Deltan extrapolou todos os limites com afirmativas ofensivas, inclusive usando de situações incongruentes com a própria denúncia que apresentara, cujo resultado, como sublinhado pelo ministro, é indiferente para a ação que julgavam. Um exemplo claro que permitiu essa conclusão foi a expressão usada: comandante máximo da organização,  general da organização, sendo que sequer constava da denúncia o crime de organização criminosa, que era objeto de outro processo.

Sobre esse aspecto, lembre-se que em outro julgamento (Reclamação 2.548) , o ministro Teori Zavaski alertara da espetacularização da entrevista, com elementos que não constam da denúncia Em verdade, o denunciado foi apresentado como se condenado fosse, com adjetivações negativas, agressivas e incompatíveis com a dignidade da pessoa humana, sem respeito ao devido processo legal, ao princípio da presunção de inocência, para apenas causar constrangimento ao denunciado e para desconstruir a sua pessoa. Esta desconstrução encontra-se na lógica da criação da figura do inimigo, utilizada como elemento do lawfere. Interessante a lição de Luis Manuel Fonseca Pires, que nos atenta para a constituição deste sujeito:

A mobilização de afetos políticos para a construção social de apoio ao regime autoritário não ocorre aleatoriamente. É preciso um elemento aglutinador. Uma força gravitacional que desperte e movimente a adesão, pode ser uma imagem, uma ideia, sujeito ou grupo, um ponto de fuga para o qual convergem todos que se animam dos mesmos sentimentos que emergem com tal força avassaladora capaz de produzir o consentimento ao regime autoritário (Estados de exceção. Editora ContraCorrente, p. 127).

Entendo que a apresentação do powerpoint e da entrevista está neste contexto da dinâmica de produção do próprio inimigo. Não à toa que durante o julgamento foi lembrada a decisão do CNMP que, em razão do julgamento de Deltan (após mais de 40 adiamentos), recomendou aos membros do Ministério Público o dever de se  abster de usar de divulgação para fins de político-partidários. Anote-se, como ficou claro no julgamento, que não se trata, absolutamente, do dever de transparência e informação. Nada do que foi feito guarda a mínima relação com esses deveres dos procuradores da república. O que houve foi um excesso abusivo com o uso da mídia.

Um dos elementos utilizados pelo lawfare, como dito por papa Francisco, é a mídia, é a grande imprensa, e sabemos, como ensinou Perseu Abramo no brilhante Padrões de manipulação na grande imprensa, os manejos possíveis da informação, sem falar em seu total desvirtuamento e a sua aquiescência aos desmandos praticados por agentes públicos. A questão fundamental é que o processo penal do espetáculo, cuja entrevista e powerpoint é um grande exemplo, mina o indivíduo denunciado ou acusado, mas não só a pessoa diretamente vinculada, senão todo o sistema democrático.

O essencial do julgamento é que se procura reconstruir o próprio sistema democrático, tão devastado, e oportuniza que o Poder Judiciário cumpra seu papel de garantidor de direitos, reconhecendo a inadmissibilidade do abuso do direito por parte dos agentes que têm funções essenciais ao sistema de justiça, pois uma sociedade civilizada não aceita que um promotor descumpra o dever ético de não prejudicar os cidadãos e atue de forma arbitrária.

 

Kenarik Boujikian é desembargadora aposentada do TJ-SP, especialista em Direitos Humanos, membro da Associação de Juízes para a Democracia (AJD) e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD).