Mia Couto: escritor moçambicano está entre os maiores nomes da literatura de língua portuguesa (foto: divulgação)

 

O escritor moçambicano Mia Couto é um dos maiores representantes do continente africano, sobretudo nos países de língua portuguesa. Nas turnês para lançamentos de livros, é frequentemente questionado sobre as relações do continente com o resto do mundo, política e sociedade. Couto não se esquiva. “Quando estou com amigos, gosto de rir e contar anedotas”, conta. Mas inevitavelmente usa a leitura e literatura como pano de fundo para suas opiniões. Em abril de 2018, ele concedeu entrevista ao, portal Nova Escola, em que comentou sobre a própria experiência escolar – e um professor que marcou sua vida –, sua relação com a gramática e arriscou uma sugestão: é preciso que haja mais espaço para a imaginação.

Em homenagem ao Dia do Professor, a Aconjur-PR reproduz essa entrevista. Confira abaixo.

 


Como foi sua experiência escolar?

Eu era um aluno sofrível, eu tirava a nota que bastava para passar. A escola não me seduzia, não me encantava. O que eu aprendi nela foi que faz falta esse lugar de sedução. A escola, para mim, era um lugar onde eu aprendia a não estar onde eu estava. Era uma espécie de exercício de exílio. Eu ficava junto a uma janela para ver o mundo e a vida, porque me parecia que a escola era muito cinzenta e pouco divertida.

 

E a escola pode ser um lugar com mais sedução?

Acho que hoje ela já é diferente. Quando entrei na escola, por volta de 1961, 1962, era uma obrigação, um lugar muito obscuro, cinzento e cheio de normas. Hoje eu vejo que meus filhos e netos têm um grande prazer em ir para a escola. E eu tinha prazer em não ir (risos). Essa coisa simples de desenhar não é só entretenimento e lazer. É algo que precisa ser profundamente instigado e acolhido porque o desenho é uma linguagem em que a criança diz o que está dentro dela e toma conta do mundo.

 

Em algum momento a escola seduziu você?

Eu sempre conto essa mesma história. Foi de um professor que não deu uma aula, e sim uma lição – que é uma coisa diferente. Ele nos mandou fazer uma redação que seria apresentada à turma. No dia seguinte, como se fosse um aluno, ele trouxe um caderno e sentou-se em uma das nossas cadeiras. Ele era um homem enorme, muito grande. Ficou ali todo desajeitado. Converteu-se num menino, como nós, numa criança – e com as mãos tremendo, leu a redação que tinha feito em casa, à noite, como se fosse um de nós. O texto dele chamava-se As mãos da minha mãe. E as mãos da mãe dele também eram as mãos da minha mãe: ele falava de mãos marcadas pelo trabalho, pelo sofrimento, pela vida e como ele gostava daquelas mãos marcadas. Eu tinha talvez uns 9 ou 10 anos, mas nunca me esqueci disso. Esse foi o momento em que eu pensei que a escola fazia algum sentido.

 

Como esse episódio se reflete na sua carreira como escritor?

Aquilo deixou uma grande impressão por duas razões: a primeira é que percebi que o que eu via como um texto obrigatório era sem sabor nenhum. Simplesmente porque tinha que estar atento à ortografia e normas da gramática. Eu notei que o prazer que tinha ao escrever uma história é o de viver no texto o que está dentro do nosso peito. A segunda razão é que aquele professor, de repente desamparado na cadeira, transformou-se num colega meu. Não é só uma questão curricular, uma questão de programa. É uma questão de atitude do professor.

 

No Brasil, muitos professores se perguntam como despertar o prazer pela leitura. Como isso é possível?

Falta ler histórias na escola. A aprendizagem da língua portuguesa e daquilo que deve ser o gosto pela leitura tem que ser pensada para que a ligação com o livro chegue ao aluno não apenas como uma fonte de saber, mas como fonte de prazer absoluto. O professor tem de ser um contador de histórias. Eu fiz isso, agora já adulto, como escritor. Eu contava uma história, que estava dentro de um livro, uma história que fosse muito interessante, que fosse realmente instigadora. Depois de fazermos daquilo um objeto de brincadeira, de brincar com o texto, eu apresentava o livro. Há uma separação do aprender com o brincar. Quando toca a sineta e o professor diz: “Agora é o recreio, é o momento de brincar”. Ou: “A brincadeira ficou lá fora, agora cá dentro da sala é outra coisa”. Essa separação é muito pouco pedagógica porque os meninos aprendem brincando.

 

Como você se sente a respeito de ter sua obra lida nas escolas?

É claro que eu tenho um certo orgulho de que meus textos possam servir às escolas, mas meu receio é justamente esse de servir. A literatura não tem uma função no sentido de ser um material escolar. Ela deve ensinar os meninos a terem uma certa indisciplina mesmo, uma certa desobediência, a viajarem, a saírem da escola. A literatura tem que ser aquela janela em que eu me encostava na escola para olhar a vida e o mundo. Eu gostaria de ser mais lido aqui no Brasil, mas com a segurança de que os meninos tenham uma relação de prazer com a leitura, que não seja uma imposição. Eu li textos literários e foi uma tortura para mim. Sou escritor apesar desse contato que me obrigaram a ter com certa literatura. Ninguém me contava claramente a história de quem estava a contar a história. Luís de Camões, por exemplo, tinha uma história que eu só descobri como era deliciosa e cheia de aventura depois. Era como se o texto aparecesse por inspiração. Cada texto tem uma relação com o lugar, o momento em que é escrito. Mas a literatura não é ensinada dessa maneira, o texto aparece como se fosse um diamante, desligado de todo o resto.

 

Quando foi feita a discussão da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), uma questão muito forte foi a relação entre a gramática e o texto. Como você vê as normas gramaticais?

Primeiro, há um pressuposto que tem que estar presente, que é: a escola precisa ensinar a pensar e a saber, tanto quanto deve ensinar a imaginar. No mundo de hoje, é importante que essas crianças saiam dotadas da capacidade de imaginar um outro mundo, um outro modo de existir e de nos relacionarmos uns com os outros. Acho que essa necessidade urgente deve ditar todo o resto. E, pensando assim, é preciso fazer as duas coisas. Eu escrevo porque domino a norma. Quando a subverto, essa subversão é que me faz ter esse prazer, senão eu não teria nenhum prazer. Mas é preciso que haja também o espaço para a imaginação. Quando dava aulas na faculdade de arquitetura, eu dizia: “Não me importa que vocês aprendam qualquer coisa nova, mas eu quero que vocês tenham outra sensibilidade”. Todos os dias passamos por objetos que estão na rua e não olhamos para eles. A natureza nos fala coisas o tempo inteiro. Tão grave quanto não saber ler o papel é deixar de ler o mundo.

 

Para chegar nesse ponto, é preciso sair da sala?

Essa dicotomia tem que ser resolvida. A escola tem que ter a possibilidade de que essa essa luz, essas vozes estejam dentro. No caso da África, por exemplo, é importante que os velhos contadores de histórias entrem e transmitam sabedorias diferentes, que os meninos tenham esse contato com alguma coisa que lhes abra outras janelas.

 

Como é seu processo de escrita? Você planeja muito o que escreve?

Eu planejo pouco. Não porque eu não quero, mas porque eu não sei. Eu me apaixono por uma certa ideia, o núcleo de uma história. Primeiro, eu construo os personagens e esses personagens têm que ter uma vitalidade, um poder de sedução que faça com que eles persistam dentro de mim e ganhem dimensão. São eles que depois me convocam e eu fico autorizado, por causa do meu silêncio, da maneira respeitosa com que compareço, a contar sua história. E eles me contam o resto da história. Depois essa linha vai se definindo sem que eu queira saber como vai fechar. Esse não saber, para mim, é uma fonte de estímulo. Ensinamos aos meninos o medo de não saber e o medo de não prever. E isso cria uma gente muito angustiada, porque nunca deixaremos de não saber – e cada vez menos somos capazes de prever. Há dez anos, quem seria capaz de prever que o Brasil ficaria como está? É preciso ensiná-los a serem felizes num mundo que tem essa margem de caos. Não podemos ter medo de desconhecer.

 

Como isso se concretiza na experiência da escola?

Aquela proposta de incitar a imaginação mostra que o erro não é sempre condenável. Se o menino escreveu errado, mas tem uma alma de escritor, se ele me contou uma boa história, eu não posso matar o escritor que está ali em nome da boa escrita. Muitos escritores se tornaram bons autores porque escreviam mal, ou seja, não seguiam o rigor da gramática. A gramática e a ortografia se aprendem depois – e deve-se aprender. É mais complicado transformar o menino que obedece à gramática num bom contador de histórias do que pegar um menino que escreve mal, mas que conta uma boa história.

 

Durante as discussões sobre a BNCC, também foi muito polêmica a controvérsia sobre o espaço da história africana e brasileira em relação com a história europeia. Como alguém que diz ter sido influenciado tanto pelo continente europeu quanto pelo continente africano, onde você nasceu e cresceu, qual sua opinião?

Mais que ouvir todas essas histórias, é importante perceber que existem ali civilizações diferentes, que há modos de olhar o mundo que são diversos. Quando dava aulas, eu reparava, com tristeza imensa, que alunos africanos, todos eles negros, achavam que a civilização e o mundo começaram na Grécia. Eles não tinham a menor ideia de que a civilização nasceu em todo lado. Fazemos isso quando apagamos os duzentos mil anos em que fomos caçadores e coletores e criamos tudo o que formou a bases da nossa modernidade. Aprendemos o sentido divino das coisas, a dimensão artística do mundo, o sentido de família, que formam as grandes bases da nossa alma hoje e que vêm de lá – e não nos reconhecemos aí. Achamos que tudo começou com os romanos e os gregos. No Brasil também se esquece que os brasileiros de hoje são a gente que chegou. Bom, os indígenas também chegaram e o que é que ficou desses indígenas no Brasil, além de alguns nomes e uma certa consciência de culpa do genocídio que foi feito? Eles não tinham arte? Não tinham uma sabedoria própria? São só objeto etnográfico? Faz falta isso, pelo menos perguntar, ter anseios de dizer: eles não são só vítimas, essa gente é sujeito da história. De onde é que vieram? Como vieram? O que é que pensavam? E que isso não seja folclore, uma coisa que a gente aceita de maneira condescendente, quase como a celebração de um objeto exótico.