Não para de crescer: número de mortes por Covid-19 atesta gravidade de crise sanitária (Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil)

 

Depois de ter em abril seu mês mais letal da pandemia de covid-19, o Brasil passou por um momento de alívio ao desafogar seus hospitais nas duas primeiras semanas de maio, quando a média móvel de óbitos caiu em 19% —no dia 17, as 786 mortes divulgadas pelo Ministério da Saúde consistiram no menor número diário desde março. No entanto, dados mais recentes, como o aumento de ocupação nas UTIs de São Paulo e a redução do isolamento social, apontam que a terceira onda já pode estar no horizonte do país mesmo sem que exista a certeza de que a segunda acabou. Com o ritmo lento e irregular da vacinação, a flexibilização das atividades e a circulação de outras viroses respiratórias no inverno em parte do país, especialistas preveem um recrudescimento da pandemia ainda mais grave nos próximos meses.

Uma projeção feita pelo Instituto de Métricas de Saúde e Avaliação da Universidade de Washington, nos EUA, indicou que o Brasil poderá chegar à marca de 750.000 mortes por Covid-19 até o fim de agosto, caso não acelere o ritmo de imunização. No pior cenário projetado pelo Instituto americano, que é usado pela Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) — braço latino-americano da Organização Mundial da Saúde (OMS) —, onde as pessoas vacinadas deixariam de usar a máscara, o país alcançaria 940.000 mortes até o fim de setembro. Até hoje [20/5], o Ministério da Saúde registra 439.050 mortes pelo vírus entre quase 16 milhões de casos confirmados.

Uma pesquisa feita entre os dias 11 e 17 de maio pelo SindHosp, o Sindicato dos Hospitais, Clínicas e Laboratórios de São Paulo, corrobora com as projeções feitas pelos analisas norte-americanos. Segundo ela, 85% dos leitos de UTI em hospitais privados do Estado estão com 80% ou mais de ocupação — em 30 de abril, 79% das entidades tinham a mesma ocupação. Entre os mais lotados, 39% possuem mais de 90% de ocupação. Nas contas do Governo paulista, as UTIs de São Paulo registraram 78,5% de ocupação no dia 18 de maio. Depois de ultrapassar os 80% em abril, os leitos estaduais ocupados abaixaram para 78,2% no dia 3 de maio e, desde então, não reduziram mais. “Conforme o tempo passa, é natural que as pessoas se cansem das medidas de prevenção por esgotamento psicológico, necessidades econômicas ou a sensação de que o cenário está mais tranquilo. Isso leva ao aumento desses números”, explica Alexandre Cunha, infectologista do Hospital Sírio-Libanês em São Paulo. No mesmo levantamento do SindHosp, 58% dos hospitais privados disseram ter estoque de medicamentos para intubação de pacientes para no máximo 15 dias.

Antonio Silva Lima Neto, médico epidemiologista da Universidade de Fortaleza, esclarece que, para entender um novo agravamento, é preciso atestar que a segunda onda se diferenciou da primeira pela sincronicidade da pandemia em todas as regiões do país. “Enquanto a onda de entrada trouxe picos em momentos diferentes do ano passado de acordo com cada região, a segunda foi marcada por uma explosão de casos e mortes, desde meados de dezembro até abril, em todo o país”, explica ele, “por conta da variante P1 [de Manaus], que provocou surtos de hospitalizações com um deslocamento da faixa etária por ser uma cepa mais contagiosa e com uma taxa de reinfecção maior. Por isso se falava em lockdown nacional em janeiro, por exemplo, quando fazia sentido frente a um crescimento simultâneo e nacional da transmissibilidade”.

Agora, o especialista deixa claro que ainda não há indicadores com o mesmo movimento claro de crescimento, mas que essa deve ser a tendência para os próximos meses. “Temos algumas características que vão favorecer um recrudescimento dos casos. Entre elas, a combinação de vacinação lenta e irregular com diminuição drástica do isolamento. Isso é um casamento trágico”, ressalta. Ele ainda acrescenta que a vacinação, da forma como está sendo feita, pode inclusive favorecer o surgimento de novas variantes ainda mais letais e contagiosas, já que uma grande quantidade de vírus continua circulando e pode se alterar. “Mas entendo que isso nem seria necessário para uma terceira onda —não me arrisco a dizer que saímos da segunda—, já que a proporção de vacinados é muito pequena, e as pessoas com menos de 50 anos, que são metade dos internados no país, ainda não constam nos grupos imunizados”, afirma. Até esta 18/5, cerca de 17,5 milhões de brasileiros haviam recebido duas doses da vacina contra a Covid-19, o que corresponde a 8,3% da população. “O intervalo entre as ondas é bem variável, então é possível ter um crescimento de casos [um pico] tão grande quanto o último, entre abril e maio, apenas um mês depois dele”, concorda Cunha. “Se não for possível vacinar uma parcela expressiva da população, é quase inevitável ter uma terceira onda de dimensões assustadoras”, completa.

Outro elemento que pode piorar a pandemia, para os médicos, é a chegada do inverno durante os meses de junho, julho e agosto nas regiões Sudeste e Sul do país. “Existe a especulação de que o clima mais frio favoreça a transmissão do novo coronavírus”, conta ele. Além disso, a época do ano favorece a circulação de outras viroses, como a gripe Influenza. “Ainda não enfrentamos a propagação intensa e simultânea de diferentes gripes comuns a essa época do ano”, explica o epidemiologista, que lembra que, em 2020, um adiantamento da campanha de vacinação contra a Influenza e a adesão maior ao isolamento social impediram o cenário. Neste ano, a vacinação contra a Influenza não foi adiantada e, em São Paulo, o índice de isolamento social ficou na média dos 40% durante os últimos dias úteis, o patamar mais baixo desde o início da pandemia. “Se tivermos mais de uma virose respiratória circulando ao mesmo tempo no inverno, seguramente os hospitais ficarão mais cheios e a pandemia será ainda pior”, projeta Lima Neto.

As férias escolares, que ocorrem geralmente no mês de julho, também podem ser um fator agravante ao possibilitar mais aglomerações e viagens familiares, na opinião de Lima Neto. Da mesma forma, o Dia das Mães, em 9 de maio, ainda que muito recente para que sejam medidos impactos, pode ter colaborado para uma piora no quadro sanitário do país. “Datas que incentivam compras na rua e festas familiares, geralmente com presença de idosos, sempre trarão o risco de um repique”, justifica.

Na visão do epidemiologista, que fez parte do comitê de enfrentamento da Covid-19 no Nordeste e ainda ocupa o cargo no comitê de médicos formado pelo Governo do Ceará, o combate à terceira onda passa pela unificação dos protocolos de atendimento e isolamento social dos Estados, além de uma aceleração na imunização. Um painel da Universidade de Oxford apontou que, no último 12 de maio, o Brasil estava com uma média de 429.000 doses do imunizante aplicadas por dia —segundo especialistas, o número ideal giraria em torno de 1,5 milhão a 2 milhões de doses aplicadas diariamente. No dia 19 de maio, o Ministério a Saúde divulgou que distribuiu 13 milhões de doses para Estados e municípios entre os dias 13 e 19 de maio, totalizando 90 milhões de doses, somando Coronavac, AstraZeneca e Pfizer, das quais 53,6 milhões foram aplicadas até hoje, entre primeira e segunda doses. “A principal medida de combate precisa ser acelerar o mais rapidamente possível a vacinação, uma vez que é uma prevenção permanente que não causa fadiga”, pontua Cunha. “Se o crescimento de casos, internações e óbitos voltar a se apresentar simultaneamente no país, a solução volta a ser um lockdown nacional. Mas, como a medida depende do Governo federal, não vai acontecer”, conclui Lima Neto.