No Senado Federal: ex-ministro da Saúde não quer responder a perguntas da CPI que investiga assuntos ligados à pandemia de Covid-19 (foto: reprodução / Senado)

 

“Advocacia-Geral da União (AGU) pede ao Supremo que garanta direito de Pazuello de ficar calado em depoimento à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI)” [1]. A referida notícia viralizou nas redes sociais, com as pessoas criticando o fato de Pazuello querer exercer o seu direito constitucional ao silêncio diante de uma CPI na qual ele é investigado. Ainda que no aspecto político possa parecer estranho um ex-ministro de um governo que tem como bandeira combater a corrupção não querer falar em uma CPI, não nos choca alguém querer exercer o seu direito fundamental de não produzir prova contra si mesmo em uma investigação.

Entretanto, a notícia que iniciou o presente artigo nos chama a atenção por outro motivo, qual seja: a Advocacia-Geral da União defender pessoalmente um agente público, apesar de não se tratar de um fato inédito [2]. Dessa feita, o presente artigo pretende, por meio de uma metodologia exploratória, estudando a legislação e a doutrina nacional, analisar a possibilidade de a AGU defender agentes públicos.

Da defesa dos agentes públicos pela AGU

De antemão, importante trazer à baila a Lei 9028/95, que prevê:

Artigo 22. A Advocacia-Geral da União e os seus órgãos vinculados, nas respectivas áreas de atuação, ficam autorizados a representar judicialmente os titulares e os membros dos Poderes da República, das Instituições Federais referidas no Título IV, Capítulo IV, da Constituição, bem como os titulares dos ministérios e demais órgãos da presidência da República, de autarquias e fundações públicas federais, e de cargos de natureza especial, de direção e assessoramento superiores e daqueles efetivos, inclusive promovendo ação penal privada ou representando perante o Ministério Público, quando vítimas de crime, quanto a atos praticados no exercício de suas atribuições constitucionais, legais ou regulamentares, no interesse público, especialmente da União, suas respectivas autarquias e fundações, ou das Instituições mencionadas, podendo, ainda, quanto aos mesmos atos, impetrar Habeas Corpus e mandado de segurança em defesa dos agentes públicos de que trata este artigo.
§1o O disposto neste artigo aplica-se aos ex-titulares dos cargos ou funções referidos no caput, e ainda:
I -aos designados para a execução dos regimes especiais previstos na Lei nº 6.024, de 13 de março de 1974, e nos Decretos-Leis nºs 73, de 21 de novembro de 1966, e 2.321, de 25 de fevereiro de 1987, e para a intervenção na concessão de serviço público de energia elétrica; (Redação dada pela Lei nº 12.767, de 2012)
II -aos militares das Forças Armadas e aos integrantes do órgão de segurança do Gabinete de Segurança Institucional da presidência da República, quando, em decorrência do cumprimento de dever constitucional, legal ou regulamentar, responderem a inquérito policial ou a processo judicial.

Desse modo, conforme se percebe, a lei acima mencionada efetivamente prevê a possibilidade de a AGU defender diversos agentes públicos pelos atos praticados no exercício da sua função, incluindo os chefes dos poderes da República, os ministros e até mesmo militares. Inclusive, a mesma lei prevê a extensão do referido benefício para os ex-integrantes dos referidos cargos, como é o caso de Pazuello em relação à função de ministro da Saúde. Desse modo, não há como negar: a defesa da AGU a Pazuello, verdadeira assistência jurídica gratuita, tem previsão legal.

Entretanto, seria a referida lei no ponto em questão constitucional?

A Constituição prevê:

Artigo 131. A Advocacia-Geral da União é a instituição que, diretamente ou através de órgão vinculado, representa a União, judicial e extrajudicialmente, cabendo-lhe, nos termos da lei complementar que dispuser sobre sua organização e funcionamento, as atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo.

Desse modo, conforme se percebe, a Constituição da República é clara: a AGU deve defender a pessoas jurídica da União e assessorar o Poder Executivo, não sendo sua atribuição prestar assistência jurídica gratuita aos agentes públicos, o que torna o artigo 22 da Lei 9028/95 inconstitucional.

Não estamos aqui defendendo que a AGU não possa defender o ato praticado pelo agente público no exercício da função, pois isso efetivamente pode e deve ser feito, pois os atos praticados pelo agente público no exercício da função devem ser imputados ao próprio poder público, seja em face da teoria do órgão adotada pelo nosso ordenamento jurídico [3], seja em face do princípio da impessoalidade [4], seja em face do princípio da imputação volitiva [5].

Entretanto, o artigo 22 da Lei 9028/95 não fala em defesa do ato praticado pelo agente público, e, sim, na defesa do próprio agente público, tal como vem sendo feito com o ex-ministro Pazuello. Ou seja: trata-se, tal como dito acima, de uma verdadeira assistência jurídica gratuita realizada pela AGU, o que está fora das atribuições constitucionais do órgão.

A instituição responsável por prestar assistência jurídica gratuita no Brasil está prevista em outro dispositivo constitucional, senão vejamos:

Artigo 134. A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do artigo 5º desta Constituição Federal.

Desse modo, cabe à Defensoria Pública prestar a assistência jurídica gratuita no Brasil, e essa assistência não é para qualquer pessoa, e, sim, para os necessitados, o que não é caso de Pazuello e de outros agentes públicos que estão na mesma situação que ele.

Pode um agente público ser assistido pela Defensoria Pública? Sim, pode, desde que comprove ser necessitado, ou seja, a pessoa precisa estar em uma situação de vulnerabilidade, que não precisa necessariamente ser apenas econômica [6]. Não comprovando ser necessitado, um agente público deveria constituir um advogado para se defender como qualquer outra pessoa ou até mesmo ser defendido por intermédio da sua associação de classe ou do sindicato da sua categoria, mas nunca poderia ter o direito de receber uma assistência jurídica gratuita pelo poder público através de uma instituição que não tem a dita atribuição, o que faz o artigo 22 da Lei 9028/95 ser inconstitucional também por ferir o princípio da igualdade, pois dá para alguns agentes públicos um benefício não extensível aos outros cidadãos.

Conclusão

Diante de tudo que foi acima aludido, concluímos que a defesa pessoal de Pazuello pela AGU por atos praticados no exercício das suas atribuições como Ministro da Saúde tem previsão legal. Entretanto, a lei com a dita possibilidade é inconstitucional por atribuir à AGU uma função que não é sua, nos termos da nossa Constituição, e, sim, da Defensoria Pública. Além disso, o artigo 22 da Lei 9028/95 também é inconstitucional por oportunizar a assistência jurídica gratuita estatal para pessoas que não são necessitadas, ferindo, assim, o princípio da igualdade ao dar um benefício para apenas parcela privilegiada da população.

 

Ricardo Russell Brandão Cavalcanti é defensor público federal, professor do IFPE, mestre e doutorando em Direito.

 


[1] Fonte: https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/05/13/agu-pede-ao-stf-para-garantir-a-pazuello-silencio-diante-de-perguntas-na-cpi.ghtml.
[2] Fonte: http://g1.globo.com/politica/processo-de-impeachment-de-dilma/noticia/2016/04/rosso-decide-que-agu-pode-fazer-defesa-de-dilma-no-impeachment.html.
[3] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 33ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p.684.
[4] ARAGÃO, Alexandre Santos. Curso de Direito Administrativo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013. p.71.
[5] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 34ªed. São Paulo: Atlas, 2020. p.13.
[6] FREIRE, Muniz; MIRANDA, Jaime; FIGUEIREDO, Rafael. Manual da Defensoria Pública. Leme: Mizuno, 2021.p.49.

 


Referências bibliográficas

ARAGÃO, Alexandre Santos. Curso de Direito Administrativo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013.

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 34ªed. São Paulo: Atlas, 2020.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 33ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.

FREIRE, Muniz; MIRANDA, Jaime; FIGUEIREDO, Rafael. Manual da Defensoria Pública. Leme: Mizuno, 2021.p