O Direito, como produto cultural de uma sociedade, não é algo transcendental ou com força própria e distinta da sociedade em que vigora. Nesse sentido, evitando-se posições extremadas num ou noutro sentido, deve-se compreender que o ordenamento jurídico possui uma relação mútua de influência e retroalimentação com a sociedade em que vige. Dessa constatação não escapa nem mesmo a Constituição, pois, como já vaticinava Konrad Hesse, a sua força normativa depende de determinados pressupostos, tanto mais quanto “mostrar-se essa convicção entre os principais responsáveis pela vida constitucional” (1991, p. 24).

Nesse sentido, não basta que tenhamos por bem sedimentado em circunstâncias ordinárias de paz social a organização do Estado e a o seu estatuto jurídico constitucional que isso implique dizer que a Constituição não deva se provar e renovar a sua legitimidade. Ao revés, essa necessidade de legitimação e manutenção da sua força deve se renovar ao longo do tempo, e especialmente em momentos de dificuldade.

Em momentos em que as instituições sofrem desgaste por processos obscuros de tentativa de deslegitimação de direitos e poderes, a Constituição é colocada à prova, e esta deve ser observada, preservada e aplicada, demonstrando-se, assim, a sua capacidade de condicionamento da realidade a partir das autoridades constituídas. Por circunstâncias de ordem política, recentemente colocou-se à prova a força normativa da Constituição em um processo cujo desfecho poderia ser singelo, mas foi bastante significativo, não pelo seu resultado, mas pelo seu percurso e pelo que representou, sendo bastante interessante a ser analisado sob a perspectiva hesseninana. Embora não fosse exatamente este o objeto da ação, ao fim e ao cabo, por meio da ADI 6524 colocou-se em discussão a possibilidade de reeleição dos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal dentro do mesmo mandato, vedada pelo artigo 57, §4º da CF.

Assim como é certo que toda linguagem é inevitavelmente ambígua, a amplitude semântica comporta certos limites. Da filosofia da linguagem a um dado extrajurídico, convém, por questões de brevidade, afirmar que a possibilidade de se concluir que seria possível a reeleição no caso concreto diante da norma do citado dispositivo legal não se trataria de uma interpretação do texto, mas de ignorá-lo. Especificamente esse não é o objeto deste pequeno ensaio, todavia. O longo voto do relator da ação, vencido, lançando mão de Direito Comparado e história institucional brasileira, como que ignorando que existe tratamento do tema expresso, é negar por expediente sutil a normatividade da Constituição, e usar a linguagem jurídica apenas como recurso retórico para camuflar a ausência de juridicidade, comparecendo apenas o poder político, aqui, sim, nosso objeto.

Lassale diferenciava a constituição real da constituição jurídica, de modo que esta era apenas um papel, o lado mais fraco, que cedia aos fatores reais de poder da sociedade, de modo que a força da constituição jurídica era apenas uma ilusão quando coincidisse com a realidade material. Em que pese divergir frontalmente da visão de Lassale, Hesse não abandonou a diferenciação entre constituição real e constituição jurídica, defendendo a existência de força normativa desta, capaz de moldar a realidade, dependente, todavia, de determinados pressupostos. São eles relativos ao conteúdo, à interpretação e à prática da normatividade da Constituição.

A prática a que se refere Hesse deve ser compreendida de forma ampla, abrangendo todos os que participam da vida constitucional tenham a vontade de Constituição (wille zur verfassung), compreendendo-se as vantagens desta como limitadora de arbítrios e sua legitimidade. Uma dessas práticas diz respeito à disposição para que se abra mão de interesses pessoais e individuais, fortalecendo a Constituição pelo que ela determina. Desse modo, questões em que se disputam interesses de poder não tornam a Constituição e seu regramento o ponto mais fraco da disputa, mantendo e fortalecendo a sua força normativa.

No caso concreto, brevemente mencionado, apesar da perplexidade do número de votos em cada sentido, prevaleceu a Constituição. Em um momento difícil por que as instituições passam no país, o elemento jurídico não foi derrogado pelas circunstâncias fáticas pontuais. Como dito por Hesse, a Constituição “cumpre seu mister de forma adequada não quando procura demonstrar que as questões constitucionais são questões do poder, mas quando envida esforços para evitar que elas se convertam em questões de poder” (1991, p. 27).

 

José Galbio de Oliveira JuniorMarcio de Oliveira Jacob são procuradores do Estado de São Paulo.