Cadeia lotada: efeito previsto do plea bargaining, que busca ‘mais condenações com menor custo’
Foi apresentado pelo atual Ministro da Justiça proposta de alteração legislativa (Projeto de Lei nº 882/2019) que objetiva incluir o instituto do plea bargaining no processo penal brasileiro, nos moldes já existentes em países da common law (Estados Unidos e o Reino Unido, por exemplo). Segundo a proposta, depois de recebida a ação penal e antes de iniciada a instrução processual, será possível que a acusação negocie (ou barganhe) com o réu um acordo para aplicação imediata de pena privativa de liberdade, abrindo-se mão do direito de produção de provas e de recorrer, desde que o réu confesse o crime, cabendo ao juiz apenas homologar esse termo.
A justificava para sustentar o instituto do plea bargaining é baseada em argumento meramente utilitarista: “mais condenações com menor custo”. Isso porque torna desnecessária a instrução processual (ouvida de testemunhas, interrogatórios…), dispensável a análise por parte do Judiciário se o réu, de fato e de direito, praticou um crime ou não, diminuindo o trabalho de todos atores jurídicos. Talvez esta seja a razão pela qual algumas associações de classe já tenham se manifestado favoráveis ao projeto.
Nos EUA, os processos criminais são resolvidos quase todos pelo plea bargaining. Retirá-lo de lá seria praticamente declarar a falência do Poder Judiciário, pois não comportaria ter que instruir e julgar todos estes casos. Conforme relata o juiz aposentado do Tribunal de Recurso de Massachusetts Phillip Rapoza, 94% dos processos criminais que tramitam nas Justiças Estaduais estadunidenses são resolvidos por meio do plea bargaining. E, quando se olha para a Justiça Federal norte-americana, esses números são ainda mais assustadores: 97% dos processos criminais em trâmite nesta Justiça se resolvem pela barganha processual entre acusação e réu [1].
Diversos direitos dos réus são sacrificados no plea bargaining, dentre eles a presunção de inocência (pois caberia ao Ministério Público ter que provar a existência e a autoria do crime); o direito à produção de provas; o direito à confrontação das provas produzidas contra si; o direito ao silêncio; o direito a ser julgado por um órgão imparcial; o direito a poder recorrer de uma decisão.
Existem várias razões para reconhecer a inconstitucionalidade do referido projeto, tais como:
(a) o fato de a liberdade, enquanto direito fundamental (Constituição da República, art. 5º, caput, LIV), ser um bem jurídico indisponível, impede que possa ser transacionada, portanto;
(b) a participação do Judiciário no atuar meramente homologatório não satisfaz a reserva de jurisdição no que toca à prisão “aceita” pelo réu, pois a Constituição prevê, em seu art. 5º, LXI, que, com exceção da prisão em flagrante e das prisões por crimes militares próprios, alguém somente pode ser preso se houver uma ordem escrita e fundamentada emanada de uma autoridade judiciária competente. Ou seja, o Judiciário deve construir o raciocínio jurídico de forma fundamentada quando se trata de ordenar a prisão de um cidadão, não bastando apenas “homologar” um documento produzido pelas partes.
Mesmo depois das considerações acerca da inconstitucionalidade, ainda assim poderia haver questionamento se não seria proveitoso um instituto jurídico como o plea bargaining, tendo em conta sua rapidez e economia processual, fundamentando-se na ideia de que somente seria aplicável àqueles réus que confessassem seus crimes. Portanto, partindo da premissa de que somente culpados confessam, somente se aplicaria aos culpados. Será isso mesmo? Será que somente os culpados é que confessam?
Imaginar que o réu (na boa parte das vezes preso) está em igualdade de condições com o Ministério Público para negociar parte de sua vida, ou seja, sua liberdade, é pura ingenuidade. Em um sistema onde a maioria dos réus é pobre e conta com o patrocínio de advogados dativos, os quais nem sequer têm tempo e energia para preparar uma defesa adequada, colocá-los a negociar sua liberdade, com a condição de confessar, perante um órgão acusador, sob a ameaça de futura condenação a uma pena superior à ofertada, cria todas as condições para que um inocente confesse sua culpa e permaneça preso.
Por qual razão imaginável um inocente se declararia culpado, sendo que a ele seria garantido direito ao processo judicial com devida instrução, caso não aceitasse o acordo?
Buscando responder a essa pergunta, Saul Kassin e Jennifer Perillo realizaram um estudo [2] no qual usaram um grupo de 71 estudantes universitários que foram informados de que estavam participando de um teste para aferição de seus tempos de reação. Aos participantes foi pedido que pressionassem as teclas de um teclado na medida em que elas eram lidas em voz alta por outra pessoa, que estava secretamente em conluio com o professor. Os voluntários foram informados de que a tecla “ALT” estava com defeito, e que, se fosse pressionada, o computador iria falhar e todos os dados experimentais seriam perdidos.
Na verdade, o computador havia sido configurado para travar independentemente do que fosse feito cerca de 1 minuto depois de iniciado o teste. Quando isso acontecia, o professor perguntava a cada participante se ele havia pressionado a tecla proibida, agindo como se estivesse desapontado por ter “descoberto” que os dados haviam desaparecido, e solicitava que o participante assinasse uma confissão. Apenas uma pessoa realmente apertou a tecla “ALT” por engano, mas um 1/4 (um quarto) dos participantes inocentes ficou tão desarmado pelo choque da acusação que confessou algo que não havia feito.
O número de réus inocentes que confessam aumenta ainda mais quando técnicas de interrogatório são implementadas – por exemplo, quando a polícia finge ter provas da culpa de uma pessoa para encorajá-la a confessar. Na âmbito da mesma pesquisa realizada por Kassin e Perillo, também foi avaliada outra abordagem técnica. Outra pessoa na sala ao lado do professor dizia que viu o participante pressionando a tecla “ALT”. Nesse caso, a taxa de confissão saltou para 80% dos participantes inocentes.
Kassin e Perillo também testaram o impacto do blefe. Dois participantes, um dos quais estava novamente em conluio com o professor, sentaram-se na mesma sala e foram solicitados a completar individualmente o que parecia ser um teste acadêmico, não podendo haver conversa entre os alunos. Na metade do processo, o professor os acusou de se ajudarem e, citando o código de honra da universidade, disse que a trapaça era sancionada. O professor, então, passou a blefar dizendo que havia uma câmera de vídeo na sala, a qual havia gravado tudo, mas que ainda não tinha sido vista pelo professor. No mundo real, isso poderia ser como um policial dizendo a um suspeito que DNA ou impressões digitais haviam sido encontradas, mas ainda não haviam sido analisados. Presumivelmente, os participantes inocentes sabiam que tal gravação os absolveria. Mesmo assim, metade ainda confessou.
Tudo isso é estranho e bastante alarmante. Kassin sugere que os participantes podem ter a crença ingênua, embora comum, de que o mundo é um lugar justo e que sua inocência emergiria no final, particularmente no caso da suposta evidência em vídeo. Um participante, por exemplo, chegou a dizer que o que o tinha encorajado a assinar a confissão era que não tinha nada a esconder, pois as câmeras provariam sua inocência.
Em casos como esse, a confissão é vista como uma maneira de encerrar interrogatórios realizados por horas com rajadas de perguntas incriminadoras.
Em brevíssimo resumo, o Projeto Inocência é uma organização sem fins lucrativos dedicada a absolver, por meio de provas como os testes de DNA, pessoas injustamente condenadas, sendo que das 364 pessoas que já foram inocentadas pelo projeto nos EUA, aproximadamente 1 em cada 4 havia, de fato, confessado o crime [3].
Uma variedade de fatores pode contribuir para uma confissão falsa, tais como pressão; coerção; embriaguez; capacidade reduzida; deficiência mental; desconhecimento da lei, das consequências; medo de violência policial; sofrimento real infligido; ameaça de uma sentença mais dura; falta de compreensão da situação.
Em particular, falsas confissões ocorrem também quando são realizadas negociações do plea bargaining, configurando a assim chamada por Saul M. Kassin confissão falsa compatível (dada para escapar de uma situação estressante, evitar punições ou ganhar uma recompensa prometida ou implícita) [4]. Nesses casos, réus confessam falsamente em razão do medo de haver uma pena a ser aplicada em julgamento bem superior ao que seria acordado com a acusação.
Apropriada a ilustração do caso que envolve Phillip Bivens e Bobby Ray Dixon, os quais, antes de terem a atenção do Projeto Inocência, chegaram a passar 30 anos presos em razão de terem “aceitado” a barganha penal ofertada pelo Ministério Público (plea bargaining), mesmo sendo inocentes.
Uma mulher havia sido estuprada e morta em Forrest County, Mississippi, em 4 de maio de 1979. A única testemunha era o filho da vítima de 4 anos, que descreveu ter visto um homem estuprar e matar sua mãe. Foram presos, além de Bivens e Dixon, Larry Ruffin. Os três confessaram à polícia, sob a ameaça da pena de morte. Suas confissões eram inconsistentes entre si e factualmente imprecisas. Dixon e Bivens se declararam culpados, fizeram plea bargaining com a acusação com medo de serem condenados à pena de morte, “preferiram” negociar a prisão perpétua. O Ministério Público, além da confissão de Dixon e Bivens, exigiu como condição para o acordo que os dois testemunhassem no julgamento de Ruffin, incriminando-o também [5]. Ruffin inicialmente foi condenado à pena de morte, porém com a anulação deste julgamento um novo foi marcado, onde resultou em pena de prisão perpétua também para Ruffin.
O Projeto Inocência conseguiu realizar testes de DNA. Os testes foram realizados com o sêmen deixado no corpo da vítima pelo agressor. O DNA não era de nenhum dos três, e sim de outro homem já conhecido. Em 2010, Dixon, Bivens e Ruffin foram “inocentados”.
Infelizmente, Ruffin já havia morrido na prisão em 2002.
Dixon, que sofreu de convulsões toda a sua vida, foi diagnosticado com câncer de pulmão que se espalhou para o cérebro, tendo falecido 5 meses depois de inocentado. Phillip Bivens e Bobby Ray Dixon cumpriram 30 anos de prisão injustamente [6].
Portanto, além de inconstitucional pelas razões expostas, o plea bargaining produz consequências severas e cruéis, como as vivenciadas por Bivens e Dixon, sacrificando uma série de direitos fundamentais do réu, como exposto acima.
As consequências do plea bargining já experimentadas nos EUA são extremamente perversas, tendo, segundo Jed Rakoff, contribuído para gerar os cerca de 2,2 milhões de presos (maior população encarcerada do mundo), em sua franca maioria negros [7].
Não pode passar desapercebido que, a reboque de desejar aumentar ainda mais a massa carcerária brasileira, que já ocupa o 3º lugar no mundo (726 mil presos [8]), o projeto de Sérgio Moro, além das inconstitucionalidades já apontadas, com certeza incrementará injustiças com mais inocentes encarcerados; incrementará sofrimento à parcela mais vulnerável da população; incrementará o número de mortes, pois, por vezes, passar um único dia numa unidade prisional brasileira pode ter como consequência a pena de morte.
Fábio Capela é juiz de Direito (TJ-PR), doutorando pela Universidade de Coimbra, mestre pela UFPR, professor de Direito Penal da Escola da Magistratura do Paraná (Emap) e da pós-graduação da Faculdade Maringá e membro da Associação Juízes para a Democracia.