O Supremo Tribunal Federal deve retomar, neste mês de fevereiro, o julgamento do recurso extraordinário nº 608.588 que tem por objeto a análise da extensão dos poderes das guardas municipais. A matéria é de extrema relevância, e não deve passar ao largo de debates constitucionais mais aprofundados. O foco da disputa interpretativa, em um primeiro lance de vista, parece ser uma simples questão de arranjo institucional. A Constituição Federal, expressamente, prevê que os municípios podem instituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, “conforme dispuser a lei”. Então, a Lei Federal nº 13.022/2014, sob o pretexto de dispor sobre o tema, enunciou que “a guarda municipal poderá colaborar ou atuar conjuntamente com órgãos de segurança pública da União, dos Estados e do Distrito Federal ou de congêneres de Municípios vizinhos”. Posteriormente, a Lei Federal nº 13.675/2018 incluiu formalmente as guardas municipais no Sistema Único de Segurança Pública (SUSP). Essa inclusão legislativa das guardas municipais no sistema de segurança pública foi objeto de questionamento no STF, que, no julgamento da ADPF nº 995, afirmou que tal providência é legítima. Aparentemente, como se nota, a questão é simples. Municípios podem instituir guardas municipais que, no âmbito local, atuam na consecução de políticas públicas de segurança, trabalhando de forma coordenada com os demais órgãos do SUSP.
Não me parece que o STF tenha se equivocado no julgamento da ADPF nº 995. O rol do art. 144, caput, da Constituição Federal, que enuncia os órgãos responsáveis pela segurança pública, não é exaustivo. A previsão de existência das guardas municipais no mesmo artigo 144 já é indício de que o rol definido no caput não é taxativo. Sendo assim, onde o está o problema que justifica atenção no julgamento do recurso extraordinário nº 608.588?
O fato de estar assentado o entendimento de que as guardas municipais integram o Sistema Único de Segurança Pública não encerra o debate sobre suas exatas atribuições. Por integrar o SUSP, as guardas municipais podem desempenhar a tarefa de patrulhamento ostensivo? Podem cooperar com as polícias militares em toda e qualquer situação? Ou apenas quando especialmente convocadas em operações? Podem as guardas municipais criar sistemas de inteligência próprios? Podem realizar investigações? Podem, em qualquer circunstância, realizar prisões? Ou apenas podem decretar a prisão em flagrante – que é franqueada a qualquer cidadão?
Esses temas já vinham sendo debatidos no Poder Judiciário, inclusive existindo uma forte tendência, no Superior Tribunal de Justiça, de reconhecimento de limites estreitos para a atuação das guardas municipais. De acordo com o STJ, as atribuições das guardas municipais, mesmo no campo da segurança pública, restariam jungidas a (i) proteção de seus bens, serviços e instalações – como está na Constituição Federal –, e (ii) apenas em relação à proteção de seus bens, serviços e instalações é que poderia decretar prisões, sendo sua atuação (iii) eminentemente preventiva. Nesse contexto, o STJ vinha anulando processos julgados com base em provas obtidas pelas guardas municipais em busca domiciliar. Também eram anuladas prisões realizadas pelas guardas municipais em operações típicas de policiamento ostensivo em situações em que os bens, serviços e instalações municipais não estavam em jogo.
A interpretação do STJ, todavia, começou a ser revista desde o julgamento da ADPF nº 995. O motivo? A partir do julgamento da ADPF, o STF passou a anular as decisões do STJ e de outros tribunais em que não se reconhecia o poder geral de polícia das guardas municipais. Esse é o contexto do julgamento que será retomado em fevereiro. Há uma primeira linha de raciocínio, na votação iniciada, que defende que, após o julgamento da ADPF nº 995, uma vez que foi reconhecida a legitimidade da inserção das guardas municipais no Sistema Único de Segurança Pública, as atribuições policiais mais amplas – inclusive de policiamento ostensivo – estão franqueadas aos agentes locais. Uma segunda linha – e que deve ser a capitaneada pelo ministro Cristiano Zanin – sustenta que o fato de o STF ter julgado que as guardas municipais integram o SUSP não autoriza, necessariamente, a conclusão de que elas possuem amplo poder de polícia.
Essa é a primeira camada do debate a ser travado. Não parece equivocado o entendimento firmado no julgamento da APDF nº 995, como mencionado anteriormente. Guardas municipais podem integrar – e integram – o Sistema Único de Segurança Pública. O que demanda cuidado é a conclusão, nada lógica, de que por isso essas guardas locais tenham o seu poder amplificado.
Sob a perspectiva estritamente jurídica, a Constituição Federal, como se viu, estipula que a atuação das guardas municipais deve ser vinculada com a proteção de seus bens, serviços e instalações. Trata-se de uma espécie de “poder de polícia especial” ou sui generis. É um poder de polícia vinculado a uma finalidade específica. Trata-se de norma de atribuição de competência que, já por essa razão, exige uma interpretação restritiva. Mesmo o reconhecimento de que as guardas municipais, pela aplicação da teoria dos poderes implícitos, devem ter todas as atribuições necessárias para o desempenho de suas funções no contexto da segurança pública, não permite a desvinculação em relação ao aspecto teleológico definido na Constituição Federal. E, se é verdade que o próprio texto constitucional estipula uma reserva legislativa – “conforme dispuser a lei” –, isso não significa que o legislador ordinário tenha recebido do Poder Constituinte um cheque em branco. A legislação pode dispor sobre a forma e requisitos da criação das guardas municipais, seus poderes e limites; todavia não pode desvirtuar a finalidade constitucional prevista para essa instituição. É o que se designa, na teoria constitucional, como reserva de lei qualificada, pois, ao mesmo tempo que autoriza ou conclama a atuação do legislador, a Constituição já estipula limites para a atividade infraconstitucional.
Todavia, esse entendimento mais restritivo não é o que, aparentemente, há de prevalecer. Tudo indica que o ministro Cristiano Zanin deve restar vencido em seu voto. E isso pode gerar graves consequências, em que as camadas submersas desse julgamento deverão aos poucos vir à tona. As guardas municipais que já existem, em um Brasil tão marcado pela desigualdade, vêm sendo corriqueiramente denunciadas por abusos. A autorização para o uso amplo do poder de polícia, nesse campo da segurança pública, tem permitido que as guardas municipais sejam instrumentalizadas para a repressão de atividades culturais das comunidades periféricas e pobres nos parques públicos, praças, feiras, bailes funk ou praias, por exemplo. E o que ocorre em Curitiba, infelizmente, não é uma situação isolada. A prevalecer o entendimento que confere amplo poder de polícia, a atuação ostensiva das guardas municipais não estará limitada aos espaços públicos – como já se anuncia no STF ao reconhecer a legitimidade de provas obtidas em locais privados como clubes, casas noturnas e mesmo nas residências dos cidadãos. Essas guardas certamente se consolidarão como mais uma instância de perpetuação de desigualdades e preconceitos sociais.
Outra dimensão problemática é a política. O número de policiais militares e civis na Câmara dos Deputados, no último pleito, cresceu em 36% – ou seja, triplicou. Atualmente a “bancada da bala” é composta por 48 deputados federais. No plano estadual, a realidade não é diferente. O discurso da segurança pública, em sociedades marcadas pela desigualdade e pela sempre presente defesa de interesses neoliberais conservadores – isso sem falar da expansão da extrema direita -, tem logrado alcançar grande apoio popular, inclusive dentre aqueles que ordinariamente são as vítimas das políticas repressivas! Nesse contexto é que o fortalecimento dos poderes da guardas municipais deve propiciar, também no plano local, a formação ou ampliação de bancadas da bala nas Câmaras de Vereadores. E esse quadro, como é possível antever, não significará mais segurança pública para a população local, mas, antes, mais exclusão e abertura para atuação de milícias.
Contudo – e para finalizar –, o fortalecimento ou ampliação das bancadas da bala municipais, provavelmente alimentada por agentes das guardas municipais cada vez mais atuantes e em evidência, talvez nem seja a questão mais preocupante. O que deve tirar o sono é o risco da concretização mais célere da distopia antidemocrática. O Brasil possui algo em torno de 5570 municípios. Os Estados, constitucionalmente competentes para a instituição e manutenção das polícias militares, por diversas razões – inclusive falta de orçamento – não têm conseguido disponibilizar efetivo minimamente razoável para todos esses municípios. A partir do instante em que se reconhecem poderes ampliados de polícia para a guarda municipal, não é de se duvidar que Joãozinho da Pipoca Doce, Prefeito do Município de Nossa Senhora de Cruz Credo, diante do descaso do governador em disponibilizar mais policiais militares para a cidade, crie sua própria guarda municipal. Isso pode se multiplicar por mais de 5500 municípios. O problema da segurança pública é então resolvido? Obviamente que não! Nesse caso, dormiremos em 2025 e acordaremos no Brasil Império. Saem os coronéis e entram os prefeitos na chefia de uma polícia local amplamente capilarizada e a serviço dos interesses… bem, os leitores sabem de quem! Nessa distopia, ou retornaremos ao coronelismo – que tanto a sociedade brasileira luta para superar – ou chegaremos mais rapidamente ao universo da obra de Orwell. Quem não quererá uma polícia para chamar de sua? Isso não acabará bem. Aguardemos que o STF, tão cioso em sua tarefa de manutenção da democracia, consiga vislumbrar esse ovo da serpente!
Paulo Ricardo Schier é doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), pós-doutor pela Universidade de Coimbra e professor do PPGD em Direitos Fundamentais e Democracia da UniBrasil