As sucessivas crises econômicas alimentam um discurso simplista e falso, que atribui ao funcionalismo público a responsabilidade pelos males que atingem o País. No quadro atual, agravado pela pandemia de coronavírus, essa ideia vem sendo difundida com intensidade cada vez maior. As informações manipuladas pela grande mídia, porém, omitem que, proporcionalmente, o Brasil tem menos servidores do que os EUA e países da Europa. Apenas 13,7% do PIB paga salários; outros 38% vão para o bolso de banqueiros e rentistas, como observa José Álvaro de Lima Cardoso. Ele é o autor do artigo Funcionalismo público, as mentiras que a elite te conta, publicado no OutrasPalavras.net em 26/8, que contesta a versão do “inchaço da máquina pública”.

 

Confira, abaixo, a íntegra do artigo.

Wassily Kandinsky (1866-1944) – Composição X (1939)

 


Funcionalismo público, as mentiras que a elite te conta

José Álvaro de Lima Cardoso

 

Proporcionalmente, Brasil tem bem menos servidores públicos que EUA e países da Europa. Apenas 13,7% do nosso PIB paga salários; 38% vai para o bolso de banqueiros e rentistas. Mas velha mídia insiste que há um ‘inchaço da máquina pública’…

 

Nos últimos tempos, no contexto mais amplo de ataques ao setor público, têm se intensificado também as investidas contra o funcionalismo público. Dentre outros objetivos, essa ofensiva visa a colocar a população contra os servidores. Se a população avaliar que o servidor é privilegiado, que não quer trabalhar, que ganha muito, fica mais fácil desmontar os serviços de saúde e educação, objetivos inconfessáveis da campanha. Tal campanha, a exemplo da campanha em geral pela privatização de estatais, é alicerçada em mentiras, senso comum e mistificações.

Dissemina-se sem dó o diagnóstico de que o Estado no Brasil é muito inchado, que existem muitos servidores públicos, que o serviço público é um “cabide de empregos”, etc. O fato é que o Brasil é um dos países que menos tem funcionários públicos, na comparação com a população total de trabalhadores do País. Nessa comparação, fica atrás, por exemplo, de quase todos os países europeus, que têm em média entre 10% e 15% do total de empregados no serviço público. Segundo o Atlas do Estado, do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), os vínculos de trabalho do setor público no Brasil aumentaram mais de 82% nas últimas duas décadas, saindo de cerca de 6,3 milhões de trabalhadores em 1995 para 11,5 milhões em 2016. Esse total inclui todos os segmentos: servidores concursados, estatutários, regidos pela CLT e os de cargos comissionados. O total de vínculos, inclusive, é diferente do número de funcionários, visto que uma mesma pessoa pode ter mais de um vínculo. O fato é que, mesmo com a elevação nos últimos anos, o número de servidores no Brasil é inferior à média dos países desenvolvidos.

Se pegarmos os dados de 2017, verificaremos que no Brasil cerca de 12,1% da população ocupada trabalhava no setor público. Este percentual equivale a dois terços dos 18% de média das nações da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), e mesmo em relação a países mais neoliberais, como os EUA (15,2%) e Reino Unido (16,4%). Esses países vêm desmontando o seu estado de bem-estar social, que algum dia já foi mais forte (especialmente no caso do Reino Unido).

O Brasil gastou no ano passado o equivalente a cerca de 13,7% do PIB com salários do funcionalismo público, incluindo todas as esferas e poderes. Dos 11,4 milhões de vínculos de trabalho no setor público, boa parte atua em áreas sociais, como saúde e educação. Segundo dados da RAIS/2018, metade dos funcionários públicos ganhava até 3 salários mínimos (R$ 2,9 mil, considerando o valor do mínimo de 2018). Apenas 3% ganhava mais do que 20 salários mínimos (R$ 19,1 mil). Um funcionário público brasileiro ganha, em média, 8% a mais do que um trabalhador que exerce função semelhante no setor privado.

Segundo dados do Banco Mundial, num conjunto de 53 países, na média internacional, o funcionário público ganha 21% a mais que o trabalhador do setor privado. No Brasil, portanto, a diferença é bem menor. A diferença para mais, de 8% em funções similares no setor público, não significa nada, considerando que no setor privado os salários de uma forma geral são extremamente baixos. O setor público tem obrigação mesmo de melhorar os salários, até porque faz exigências maiores de qualificação.

É verdade que nos poderes da República há muita diferença salarial, o que, frequentemente, confunde o observador. No Executivo, por exemplo, onde se concentram professores, médicos e policiais, apenas 25% dos trabalhadores ganham mais de R$ 5 mil. No poder Legislativo, onde estão vereadores, deputados, senadores e seus funcionários, mais de 35% recebe mais de R$ 5 mil. No Judiciário, onde trabalham juízes, promotores, funcionários de fórum, o percentual dos que ganham acima de R$ 5.000 sobe para mais de 85%.

É evidente que o setor público brasileiro contém importantes distorções salariais, que precisam ser corrigidas. Os 16,2 mil juízes em atividade no Brasil ganham, em média, R$ 46 mil mensais e três em cada quatro recebem mais do que o teto do funcionalismo público, de R$ 39.293 mil. Atualmente, o auxílio-moradia de um juiz está custando R$ 4.377,00, praticamente duas vezes o salário médio de todos os ocupados no Brasil. É um negócio vergonhoso, uma clara distorção que precisa ser corrigida.

Apesar desse tipo de distorção (certamente existem outras), esta não é a realidade da maioria dos servidores públicos. Como vimos, metade dos funcionários públicos ganha até 3 salários mínimos. Porém, a partir dessas distorções salariais se construiu uma montanha de mentiras a respeito do funcionalismo público, que se dissemina no seio da sociedade, visando a atingir os serviços públicos de uma forma geral, com intenção de privatizá-los. É uma verdadeira máquina de trituração da reputação dos servidores públicos. São ataques sórdidos, que obedecem a uma estratégia internacional de destruição do serviço público, desencadeada, entre outros atores, por grandes empresas multinacionais, atrás de bons negócios.

Enquanto se desenvolve a estratégia de desmonte dos serviços públicos, o Brasil continua destinando quase metade do orçamento federal para o pagamento de juros e o rolamento da dívida pública federal. No ano passado, o governo federal destinou aos banqueiros e rentistas a soma de R$ 1,038 trilhão – ou 38,27% de todo o orçamento público federal. O governo Bolsonaro, segundo o Tribunal de Contas da União, gastou apenas R$ 11,4 bilhões, dos R$ 38,9 bilhões, da verba emergencial destinada ao combate da pandemia. Isso no instante em que o Brasil emplaca 3.460.413 contaminados e 111.000 mortos (isso, registrados). Enquanto isso, pela Lei Orçamentária Anual – LOA/2020, estão previstos R$ 409,6 bilhões para o pagamento de “juros/encargos da dívida pública” neste ano.

É quase meio trilhão de reais. Isso representa 1,1 bilhão de reais todo santo dia, somente este ano. Todo ano, bilhões e bilhões são transferidos para algumas centenas de rentistas (que em boa parte nem moram no Brasil). Somente os gastos com os juros e encargos da dívida pública deste ano já totalizam um valor superior ao que o governo espera arrecadar com a torra de patrimônio púbico. E, praticamente, nem se fala nisso. Querem entregar a Eletrobras, um patrimônio estratégico, por 18 bilhões, enquanto destinam diariamente R$ 1,1 bilhão para os rentistas, em nome de uma dívida que não resiste a uma auditoria pública.

O debate sobre uma reforma administrativa deve seguir caminho contrário ao que a extrema-direita e os golpistas estão querendo trilhar. Ou seja, o debate deve ser feito a partir das necessidades do país e de seu povo, em busca do desenvolvimento econômico e social. Mas está claro que é impossível fazer tal debate com o atual governo, que na verdade quer destruir os serviços públicos e transformar o Brasil definitivamente numa colônia dos EUA. As questões do debate não são meramente técnicas, e sim também políticas, ligadas à correlação de forças. A discussão sobre o Estado brasileiro, funcionalismo e serviço público tem que ser precedida da retomada da democracia no país.

 


José Álvaro de Lima Cardoso é economista, doutor em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina e supervisor técnico do escritório regional do Dieese em Santa Catarina.