Notre Dame incendiada em Paris: acidente ocorrido em abril de 2019 coloca a arte como medida de reparação à população afetada pelos grandes desastres

 

O ano que marcou os cinco séculos da morte de Leonardo da Vinci e o 350º aniversário de Rembrandt foi especialmente movimentado para o Direito da Arte, esse complexo subsistema jurídico que se ocupa do artista e da produção, circulação, consumo e proteção de obras de arte.

Na Europa de 2019, o mercado de arte foi pródigo em novas regras que trouxeram repercussão global. Em janeiro, o Parlamento Europeu aprovou a Resolução 2017/2023 (INI), que tratou das reivindicações transfronteiriças de devolução de obras de arte e bens culturais pilhados em conflitos armados e guerras, um problema ainda hoje delicado, já que se calcula em 600 mil o número de ativos culturais roubados das coleções europeias durante a 2ª Guerra Mundial que ainda podem ser reivindicados. Em abril, foi publicado o novo Regulamento 2019/880 da União Europeia, relativo à introdução e à importação de bens culturais no território aduaneiro do bloco. No mesmo mês, saiu ainda a Diretiva 2019/790 que cuida do direito de autor e direitos conexos no mercado único digital.

Apesar disso tudo, a engrenagem normativa do mercado europeu está muito longe da harmonização, e institutos jurídicos como a  aquisição a non domino, a boa fé, a due diligence e a prescrição geram, por vezes, incertezas, mesmo passados 25 anos da Convenção Unidroit, de 1995, e os 50 anos da Convenção Unesco, de 1970, ambas nucleares para a salvaguarda patrimônio cultural.

Um dos temas que mais produziu tensão e debate ao longo de 2019 foi a liberdade de expressão artística e seus limites. Foi um ano em que, de maneira especial, a importância do papel do Estado na liberdade de expressão artística foi ressaltada, exatamente porque se percebeu que, também nas democracias, os governos podem fazer escolhas que se aproximam daquelas indesejáveis para o ambiente criativo e livre onde florescem as artes.

O mais rumoroso exemplo brasileiro  de 2019 foi a apreensão da graphic novel “Vingadores, a cruzada das crianças” (ed. Salvat), que exibia um beijo na boca entre dois personagens gays, na Bienal do Livro do Rio de Janeiro. A decisão do presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro foi no sentido de permitir que agentes da prefeitura recolhessem obras com temática LGBT que fossem voltadas ao público infanto-juvenil e não estivessem lacradas. Essa decisão foi revertida pelo Supremo Tribunal Federal, em dois processos distintos, em decisões proferidas pelos ministros Dias Toffoli e Gilmar Mendes.

A edição de leis e a execução de políticas públicas com repercussão sobre a liberdade de expressão artística foram sentidas em escala mundial. Esse cenário foi reportado não apenas por organismos internacionais — Unesco, Iconos, Icom, dentre outros, mas também por ONGs que atuam em escala global, com destaque, no tema da liberdade de expressão artística, para o Relatório “The State of Artistic Freedom”, anualmente divulgado pela ONG norueguesa Freemuse e disponível para download livre e gratuito em seu site.

O último ano desta segunda década do terceiro milênio foi também o primeiro ano de gestão do governo federal e de renovação de congressistas. Dessa renovação, surgiu  um conjunto de medidas administrativas e legislativas de impacto para o setor de arte e patrimônio cultural. A alteração administrativa que teve maior repercussão no âmbito judicial foi a edição do Decreto Presidencial 9.919/2019 e da Portaria 1.576/2019, do Ministério da Cidadania, que promoveram mudanças na destinação de verbas para a produção cinematográfica nacional. Essas normas foram questionadas judicialmente pelo Ministério Público Federal na Justiça Federal do Rio de Janeiro, com obtenção de decisão liminar favorável; e pelo Partido Rede Sustentabilidade, que ajuizou, no Supremo Tribunal Federal, a Ação Declaratória de Descumprimento de Preceito Fundamental, ADPF 614, de relatoria da ministra Cármen Lúcia, que determinou a realização de audiência pública para debater o tema, a qual aconteceu em novembro.

No entanto, num âmbito mais amplo, a mais visível e controversa de todas as mudanças talvez tenha sido a extinção da pasta da Cultura e sua integração ao Ministério da Cidadania, onde ficou grande parte do ano e de onde saiu para juntar-se ao Turismo no final de 2019. A unificação das pastas da cultura e do turismo em um único ministério seguiu uma inspiração claramente italiana, onde há tempos existe um ministério conjunto.

Certamente a realidade brasileira é diferente da italiana, mas sempre há algum espaço para boas expectativas, afinal a arte movimenta a economia e atrai multidões de turistas. A exposição de Tarsila Amaral no Masp, em São Paulo, bateu todos os recordes de público. O reconhecimento pela Unesco do complexo cultural do Bumba Meu Boi do Maranhão como patrimônio imaterial da humanidade lança luzes não somente para a prática cultural mas também para o território onde ele se desenvolve e para o povo detentor desse bem.

Em 2019, também foi a vez de Paraty e a região de Ilha Grande (RJ)  ganharem o título de patrimônio da humanidade. De modo inédito, um sítio brasileiro misto (histórico e natural) foi reconhecido pela Unesco como patrimônio da humanidade. Por enquanto, temos 22 bens declarados como bens da humanidade nessa categoria. No entanto, há risco de o Brasil perder um dos títulos de bem da humanidade: o do Cais do Valongo. A denúncia do descaso estatal com esse importante patrimônio, que se enquadra como bem de memória sensível (único brasileiro nessa categoria), foi manchete dos noticiários em 2019.  A boa notícia é que em setembro, o BNDES anunciou que o Cais do Valongo receberá R$ 1,7 milhão para obras de conservação e ações educativas.

Trazendo à tona um aspecto pouco explorado em tombamento de bens, em 2019, os pesquisadores da Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais apresentaram um dossiê que pode  subsidiar a preservação da área de Bento Rodrigues (município destruído pela tragédia Mariana – Caso Samarco) como bem de memória sensível. Diferente do Cais do Valongo, a novidade do tombamento de Bento Rodrigues será a reparação contemporânea (no sentido de ser bem próxima ao tempo do acontecimento), que permite a fruição do bem pelos sobreviventes, como garantia de não repetição.

Essa sugestão de medida reparatória, fruto de uma pesquisa que durou três anos, chegou meses após o triste desastre de Brumadinho, também em Minas Gerais.  A tragédia aconteceu em janeiro de 2019 e ceifou mais de duzentas vidas, além de ter causado um sério prejuízo ao turismo cultural da região, com destaque para o decréscimo de visitantes ao Instituto Inhotim, maior espaço cultural ao ar livre da América Latina.

Outra alteração legislativa importante, ocorrida no Brasil, foi a inclusão, no pacote penal promovido pela Lei 13.964/2019, de um inédito dispositivo (o artigo 124-A) estabelecendo que, “na hipótese de decretação de perdimento de obras de arte ou de outros bens de relevante valor cultural ou artístico, se o crime não tiver vítima determinada, poderá haver destinação dos bens a museus públicos.”

Ainda no âmbito criminal, pela primeira vez, uma galeria de arte foi alvo de mandados judiciais de busca e apreensão por conta de seu protagonismo nos complexos esquemas de lavagem de dinheiro das operações de combate à corrupção. A 65ª fase da Operação Lava Jato, denominada “Galeria”, eletrizou o setor.

De modo geral, a pouca transparência, a ausência de regulação e o receio da lavagem de dinheiro continuaram a ser motivos de crítica e preocupação do setor de artes em 2019, segundo a 6ª edição do relatório Art & Finance 2019, divulgado pela consultoria Deloitte em outubro. Aliás, neste janeiro de 2020 entrará em vigor a 5ª Diretiva Antilavagem de Dinheiro da União Europeia, com aplicação sobre galerias, antiquários e casas de leilão em quaisquer  transações acima de 10.000 euros.

Em resposta aos esforços da União Europeia, a Câmara dos Deputados dos Estados Unidos aprovou, em outubro, um novo projeto de lei antilavagem de dinheiro que afeta os negociantes de arte e antiguidades. A nova norma, denominada Counter Act, pretende reprimir as empresas de fachada, combater a lavagem de dinheiro e impedir o financiamento do terrorismo, mas ainda precisará passar no Senado. Nesse panorama, a figura do Whistleblower tem tudo para ganhar ainda mais importância no sistema de arte.

Lavagem de dinheiro e Panama Papers foram precisamente o tema de um dos grandes filmes de 2019: The Laundromat (A Lavanderia), de Steven Soderbergh, com Antonio Banderas, Gary Oldman e  Meryl Streep. Imperdível.

Pelo menos num aspecto pontual do setor de museus, a falta de transparência foi contornada por uma planilha pública criada anonimamente no Google Docs em 2019. Intitulado Art/Museum Salary Transparency 2019, o documento contém informações sobre os termos salariais de alguns dos maiores museus do mundo. Há indicadores remuneratórios do Metropolitan Museum of Art, Museum of Modern Art, Harvard Art Museums, Whitney Museum of American Art, Museum of Fine Arts Boston e Philadelphia Museum of Art, o que facilita a accountability sobre o setor de cultura.

Além dessas preocupações internas do sistema de arte, o assustador fenômeno da acqua alta de Veneza, ocorrido em novembro, mostrou ainda que as mudanças climáticas e a elevação do nível dos oceanos constituem uma questão incontornável para a proteção (e o risco) do patrimônio cultural de todo o globo. Na sua 71ª sessão, em 2019, a International Law Commission da ONU decidiu incluir o tópico Sea-level rise in international law no seu programa de trabalho e criar um grupo de estudo sobre o tema, composto por Bogdan Aurescu, Yacouba Cissé, Patricia Galvão Teles, Nilüfer Oral e Juan José Ruda Santolaria.

O Brasil e os países de tradição ibérica certamente terão interesse no tema, sobretudo se considerarmos o rico patrimônio cultural colonial ligado à arquitetura urbana, religiosa e militar construído ao longo da costa e dos rios. A propósito, em 2020, o Iphan deverá concluir o dossiê de candidatura a Patrimônio Mundial da Unesco de um conjunto de fortalezas e fortes tombados, em vários Estados brasileiros, de modo a garantir o futuro de nosso passado justamente quando caminhamos para os 200 anos de independência, em 2022.

Os fatos ocorridos em Minas Gerais (Brumadinho e Mariana), Veneza (acqua alta) ou Paris (o incêndio da Notre Dame) apontam para o que pode ser uma expectativa para a próxima década: a inserção da arte como medida de reparação à população afetada pelos grandes desastres, acontecimentos que lançam luzes para a necessidade de melhor utilização do  arcabouço teórico e da prática internacional relativos ao Direito e à Governança dos Desastres, para estabelecer mecanismos de justiça e reparação adequados à complexidade da situação. O uso da arte como reparação integraria as duas últimas fases do ciclo dos desastres, que são a compensação e a reconstrução.

Em abril de 2019 a Court of Arbitration for Art (CAfA) abriu suas portas em Haia como o primeiro tribunal internacional dedicado à solução de disputas envolvendo obras de arte. Em um encontro recente, a sua Secretária-Geral, Camilla Perera-de Wit, indicou que a corte já recebeu e já começou a trabalhar sobre as suas primeiras demandas.

Na última Conferência Geral do Conselho Internacional de Museus (Icom), realizada em setembro, em Quioto, Japão, foi discutida uma nova conceituação de museu, que, mesmo tendo sido adiada, causou grande polêmica. Um Comitê do Icom propôs a seguinte definição: “Os Museus são espaços democratizantes, inclusivos e polifônicos, orientados para o diálogo crítico sobre os passados e os futuros. Reconhecendo e lidando com os conflitos e desafios do presente, detêm, em nome da sociedade, a custódia de artefatos e espécimes, por ela preservam memórias diversas para as gerações futuras, garantindo a igualdade de direitos e de acesso ao patrimônio a todas as pessoas.

Os museus não têm fins lucrativos. São participativos e transparentes; trabalham em parceria ativa com e para comunidades diversas na recolha, conservação, investigação, interpretação, exposição e aprofundamento dos vários entendimentos do mundo, com o objetivo de contribuir para a dignidade humana e para a justiça social, a igualdade global e o bem-estar planetário.” Novos debates marcarão 2020.

Se, no balanço de 2018, Banksy poderia ter sido o artista do ano, a distinção de 2019 poderia ir para Maurizio Cattelan e a sua banana de 120 mil dólares, ao esgarçar ainda mais as noções de obra de arte e artista na arte contemporânea… O Coringa Cattelan lida com com aquilo que os franceses chamam de artification, ou seja, a destinação artística de certos objetos.

Aliás, 2019 foi um ano especialmente interessante para as bananas: Em abril, na Polônia, centenas de manifestantes empunharam bananas em passeatas depois que o Museu Nacional de Varsóvia retirou as obras feministas de Natalia LL, Katarzyna Kozyra e da dupla Karolina Wiktor e Aleksandra Kubiak de suas paredes, por considerá-las indecentes. Em setembro, foi a vez de Urs Fischer pendurar uma vistosa e controversa banana de cera num dos seus novos designs de bolsas que concebeu para a vetusta Louis Vuitton. Em outubro, Banksy (ele de novo!) não tratou diretamente de bananas, mas vendeu num leilão por £9.9 milhões o seu satírico parlamento de macacos (Devolved Parliament), criticando o Brexit embananado. E ainda teve, no final do ano, David Datuna devorando a instalação de Maurizio Cattelan na Art Basel Miami em busca de atenção… Ufa, que ano! Desde Frans Post e Albert Eckhout, no Brasil do século 17, que bananas não faziam tanto barulho na arte.

 


Marcílio Franca é presidente do Ramo Brasileiro da International Law Association (ILA Brasil), árbitro suplente do Tribunal Permanente de Revisão do Mercosul, doutor em Direito pela Universidade de Coimbra e professor da Universidade Federal da Paraíba.

Inês Virgínia Prado Soares é desembargadora do Tribunal Regional Federal da 3ª Região e doutora em Direito pela PUC-SP.