O conceito de legitimidade está diretamente ligado à maneira como se enfrenta a questão da legalidade no direito. Desde a sua origem, a palavra legalidade esteve vinculada a um sentido normativo, significando, na visão do homem comum, o correspondente aos comportamentos devidos e socialmente desejáveis. Conforme o professor Luiz Fernando Coelho, a concepção dogmática do direito se assenta na visão da “positividade” atribuída ao direito uno, estatal e racional, abrangendo uma noção articulada com as ideias de vigência, historicidade, eficácia, legitimidade, legalidade, facticidade, efetividade e observância (COELHO, 1987, p. 351).

A perspectiva racionalista que identifica o direito como um sistema normativo (fala-se, aqui, do racionalismo centrado na questão da sociedade, e não propriamente no racionalismo centrado na questão da natureza) não prescinde da visão do Estado como elemento básico para a identificação do direito. O ápice dessa postura foi atingido com Código de Napoleão, que, procurando descrever o direito como uma estrutura coerente em si mesma, expressou a crença exacerbada na legalidade, vedando, em seu próprio texto, qualquer trabalho hermenêutico.

Transportada a questão para o âmbito da experiência jurídica contemporânea, constata-se, como o faz o jurista Nelson Saldanha, que a ideia de legalidade assume uma feição estritamente formal, o que faz com que a ela se contraponha a noção de legitimidade (SALDANHA, 1977, p. 189-190). O ponto de partida dessa cisão está no movimento historicista, encabeçado por Friedrich Karl Savigny (1779-1861), que lançou as sementes do sociologismo jurídico. Savigny, desenvolvendo a teoria do “espírito coletivo” (“alma do povo”, “convicção comum do povo” ou volksgeist), negou a identidade entre o Código de Napoleão e o direito francês, entendendo que este seria perceptível somente a partir de uma manifestação coletiva ligada a fatores históricos (o volksgeist).

Embora frequentemente destacada pela doutrina tradicional, a dicotomia entre legalidade e legitimidade esbarra em obstáculos importantes quando se trata de justificá-la ou explicá-la com coerência. Importante, nesse sentido, foi a contribuição de Max Weber, que, ao estudar os diferentes modos de dominação (dominação carismática, que ocorre em situações excepcionais, encabeçada por um líder especial; dominação tradicional, compreendendo a doutrina e a tradição; e dominação racional, correspondente à ordem legal e característica do ocidente moderno e contemporâneo), concluiu que a cada uma delas corresponde um tipo de legitimação, variável de acordo com o contexto próprio da época em que se encontre. Com apoio nesse estudo, Carl Schmitt identificou no legalismo o traço próprio de um tipo de Estado, dando ênfase à distinção entre legalidade e legitimidade (a legitimidade, para ele, não pode ser reduzida a um simples dado formal). Em comentário sobre as observações de Weber, Coelho (1987, p. 362) destaca:

Weber não o diz, mas está implícito que a tecnocracia contemporânea é um estágio a mais na progressiva racionalização; se ela fosse acompanhada da desalienação, talvez isso pudesse representar um bem, dando-se razão a Weber quando estabelece tal evolucionismo no sentido da racionalidade. Mas ela é precisamente manipulada pela ideologia, agora para internacionalizar a dominação – não a pura e simples exploração de homens sobre homens, mas a de povos sobre povos.

Sob esse prisma, então, a legitimidade racional delineada por Weber deve ser compreendida em face da ideologia, vista como categoria crítica conjugada com a alienação. Em passagem anterior do seu estudo, Coelho acentuava:

A legitimidade é a qualidade ética do direito, a maior ou menor potencialidade para que o direito positivo e os direitos não-positivos alcancem um ideal de perfeição. Esse ideal, espaço privilegiado da ideologia, pode ser provisoriamente identificado com a justiça, ou certos valores que representam conquistas da humanidade, principalmente os direitos humanos. (COELHO, 1987, p. 358)

A ideologia da legitimidade, de acordo com a teoria crítica defendida por Coelho, está vinculada à alienação[*], eis que se pode fixar como premissa fundamental a ideia de que uma ordem social somente será legítima se a sociedade se auto-instituir por força da conquista da autonomia dos indivíduos, o que pressupõe uma sociedade historicamente desenvolvida no sentido da libertação. Assim, o estado de inconsciência social traduzido pela alienação compromete a própria legitimidade da ordem social e jurídica, dado que o consenso dos dominadores se obtém à custa da manipulação ideológica que faz com que os dominados permaneçam em constante nível de inconsciência (COELHO, 1987, p. 365-366). A partir daí, a conclusão é a seguinte: “Visto sob o prisma da alienação, o princípio da legitimidade perde o seu caráter absoluto de pressuposto ético válido por si, e relativiza-se em função do grau de autonomia das sociedades concretas e da capacidade delas de auto-instituir-se, promovendo os meios para que o indivíduo se autonomize” (COELHO, 1987, p. 366).

Também abordando aspectos ligados à ideologia, ainda que sem enfocar diretamente o problema da legitimidade, Roberto Lyra Filho condena o apego excessivo a textos legais próprio da dogmática jurídica. E afirma: “A identificação entre direito e lei pertence […] ao repertório ideológico do Estado, pois na sua posição privilegiada ele [o Estado] desejaria convencer-nos de que cessaram as contradições, que o poder atende ao povo em geral e tudo o que vem dali é imaculadamente jurídico, não havendo direito a procurar além ou acima das leis” (LYRA FILHO, 1985, p. 9). Já para Saldanha (1977a, p. 415), a conclusão é a seguinte:

A ideia de legitimidade, contendo um plano axiológico e envolvendo sempre implicações filosóficas, pode apresentar-se com aspecto ideológico. Há sempre uma margem de relatividade em toda legitimação, que depende da afirmação de certas premissas ou da aceitação de algum dado fundamental. Esse dado se refere a uma visão global do homem e da vida política, e pode ligar-se a tendências doutrinárias ortodoxas ou não, extremadas ou não. As formas políticas fundamentais (democracia-autocracia) correspondem a modos diversos de legitimação.

A dificuldade maior na análise do tema proposto aqui consiste em evitar a adoção de um conceito apenas formal de legitimidade. De outro modo, indaga-se sobre a possibilidade – que parece afastada pelo caráter complexo da realidade social – de uma formulação jurídica “pura”, livre de conotações ideológicas, que, ainda assim, não enxergue no legal, no legítimo ou no justo conceitos apriorísticos ou excessivamente abstratos.

 

[*] O conceito de alienação é essencial na filosofia hegeliana. Trata-se, resumidamente, do ‘estado separado da consciência, a sua infelicidade, a sua dilaceração, no que ele tem de mais penetrante intelectualmente’ (LEGRAND, 1983, p. 28).

 

 


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

COELHO, Luiz Fernando. Teoria crítica do direito. Curitiba: Livros HDV, 1987.

LEGRAND, Gerard. Dicionário de filosofia. Lisboa: Edições 70, 1983.

LYRA FILHO, Roberto. O que é direito. São Paulo: Nova Cultural/Brasiliense, 1985.

SALDANHA, Nelson. Legalidade. In: FRANÇA, R. Limongi (Coord). Enciclopédia Saraiva do Direito. São Paulo: Saraiva, 1977. v. 48, p. 188-190.

SALDANHA, Nelson. Legitimidade. In: FRANÇA, R. Limongi (Coord). Enciclopédia Saraiva do Direito. São Paulo: Saraiva, 1977a. v. 48, p. 414-415.