Na primeira metade do século XX: crise econômica na Europa resultou na ascensão de regimes autoritários
O fascismo não é uma exceção à
humanidade, mas sim parte dela.
(Madeleine Albright)
O segredo da democracia é a eterna vigilância, dizia Thomas Jefferson. Nunca a expressão se encaixou tão bem ao Brasil, ao momento em que vivemos. Jair Bolsonaro foi eleito presidente. Seja pelo desgosto com a política tradicional, seja pelo gosto às suas propostas, ele é o novo chefe de Estado e de governo.
Madeleine Albright, em seu livro Fascismo: um alerta, discorre sobre a ascensão de governos autoritários de direita e esquerda no mundo. Surgem da insatisfação com a corrupção do Legislativo, do medo do diferente, do imigrante, das minorias. Desde Mussolini, Hitler e Stalin até Trump, Erdogan, Maduro, Putin, Ortega, Duterte, Fattah el-Sisi e tantos outros, há o descontentamento com o marasmo democrático e a aposta na força e na determinação para a solução dos problemas, ainda que ao preço da entrega de uma porção maior do que a usual de liberdades e garantias.
Nesse contexto, a autora cita alguns lugares-comuns de regimes que são ou se pretendem autoritários.
Em primeiro lugar, o avanço sobre a liberdade de expressão. Desde manifestações culturais até a imprensa, artistas e jornalistas são alvo de críticas, ataques e, por fim, de repressão estatal. Mussolini, em 1926, tratou de restringir a liberdade de imprensa. O mesmo fez Orban na Hungria em 2010, Fattah el-Sisi, no Egito, em 2013 e Putin na Rússia.
Ao lado do cerceamento da imprensa, surge a máquina de construção de verdades alternativas. Os mais diversos instrumentos são usados para falsear a realidade, desde a supressão de figuras em fotografias — passatempo regular de Stalin — até a disseminação de fake news como parte da política pública institucional, como ocorre na China, Rússia, Venezuela, Filipinas e Turquia. Como afirmava Jonathan Swift, “a falsidade voa e a verdade vem a coxear atrás dela”. Nem sempre em tempo de advertir dos graves riscos da mentira.
Em segundo lugar, os embates com o Poder Judiciário. A independência dos magistrados costuma incomodar projetos autoritários de poder. A intervenção é lugar-comum na Rússia, Turquia e Venezuela. Na Polônia, o Partido Lei e Justiça inaugurou o exercício do poder com a limitação de poderes do Tribunal Constitucional. No Brasil, Getúlio Vargas e Costa e Silva cassaram ministros do STF em nome de seus regimes autocráticos.
Imprensa e Judiciário são os primeiros alvos. Mas não no curto prazo.
A autora aponta que, em regra, o avanço do autoritarismo é paulatino. Nunca vem de sopetão. Tanques nas ruas não surgem da noite para o dia. É aos poucos que seu caminho é pavimentado, sempre com apoio das mais diferentes camadas sociais — e do setor financeiro, pois a democracia nunca morre sem aplausos ou buzinas efusivas nas ruas.
Há sempre um respeito inicial às instituições. Hitler costumava jurar respeito aos princípios democráticos, ao parlamento, à liberdade. Ocorre que sempre há um incidente — uma manifestação que acaba em confronto, um golpe fracassado, como na Turquia ou na Venezuela. Então, uma convulsão política e social, e abandonamos a democracia sem nos darmos tanta conta.
Como relata um alemão, às portas do Terceiro Reich:
Viver nesse processo é ser absolutamente incapaz de se dar por ele — por favor, tentem acreditar em mim. […] Cada passo foi tão pequeno, tão inconsequente, tão bem explicado ou, ocasionalmente, ‘lamentado’ que, ao menos que estivéssemos desligados de todo o processo desde o início, menos que compreendêssemos onde […] todas essas ‘pequenas medidas’ que nenhum ‘alemão patriótico’ poderia lamentar conduziriam um dia, não veríamos o processo a desenvolver-se de dia para dia, tal como o agricultor não vê o milho crescer no campo. […] E um dia, demasiado tarde, os nossos princípios, se alguma vez tivemos consciência deles, precipitam-se sobre nós”[1].
Mussolini afirmava que o acúmulo do poder deve seguir o método de depenação de galinhas — pena a pena, para que cada grito seja ouvido em separado, a distância, sem que ninguém se aperceba do todo.
Por isso, é preciso cuidado.
Bolsonaro pode não ser um atentado à democracia. É o que se espera. Suas propostas polêmicas serão legítimas se aprovadas pelo Legislativo, em um processo constitucional.
No entanto, há algo de estranho no ar. Há homenagens ao comandante Ustra, menções a varrer a oposição, ao centro de tortura da Ponta da Praia. O agora eleito presidente afirmou que seguiria o exemplo de Caxias na pacificação do Brasil. Gaúchos e paraguaios conhecem bem os métodos do militar para reprimir dissidências. Pode ser retórica, diletantismo, mas nos detalhes mora o diabo.
E o diabo pode deixar o líder em paz, mas atuar sobre seus seguidores. O ódio pode não ser praticado, mas incitado. O presidente pode respeitar as instituições, mas sua retórica pode inspirar a violência nas ruas, o desrespeito às minorias, a agressão física àqueles desprezados nos discursos.
Nesse contexto, a vigilância de Jefferson é necessária. O trato à imprensa e ao Judiciário serão os parâmetros, a régua pela qual deve ser medido o novo governo. Se os primeiros sinais do autoritarismo se mostram nesse terreno, é aqui que fileiras devem ser cerradas, em defesa da liberdade e da Constituição.
Albright expõe o efeito manada das mudanças políticas no mundo. Há uma tendência global ao autoritarismo. Em 2017, o índice de democracia do The Economist revelou que 70 países retrocederam nesse quesito.
Que o novo governo resista aos exemplos dos líderes já citados. Que defenda suas propostas e aceite abrir mão delas, caso o Legislativo as rechace, ou que a imprensa as critique. Que compreenda que vivemos em uma sociedade plural, em que as diferenças devem ser toleradas, em que as minorias devem ser respeitadas. Que a legalidade prevaleça e que o Judiciário não se curve à subserviência, mas à Constituição.
É o que desejo.
E como dizia Edward Murrow em seu programa de rádio que ia ao ar durante a perseguição macartista a supostos comunistas nos Estados Unidos: “Boa noite e boa sorte”.
Pierpaolo Cruz Bottini é advogado e professor livre-docente de Direito Penal da Faculdade de Direito da USP.
[1] In Madeleine Albrigfht. Fascismo: um alerta, p.279.