As redes sociais revelam a ambiguidade fundamental de nossa condição. Democratizam o acesso à informação, mas também permitem a disseminação de todo tipo de boato e notícia falsa; aumentam muito a possibilidade de diálogo e troca intersubjetiva, mas também reduzem a linguagem, em sua sagrada complexidade, a emojis (repristinando os acadêmicos de Lagado d’As Viagens de Gulliver, que pretendiam trocar as palavras por objetos); facilitam a pesquisa e incitam a curiosidade, mas simplificam tanto o caminho de forma a promover a idiotização e o emburrecimento coletivo. É a nesciontologia que assume lugar dominante.
A culpa, é óbvio, não é das redes sociais em si. Felizmente, ainda – ainda –, é possível compartilhar coisas úteis, interessantes, e não só fake news de candidato. Recebi, dia desses, um interessantíssimo vídeo que, depois, descobri tratar-se do curta Matemática alternativa.
Recomendo que assistam, de forma que não pretendo transcrever o vídeo todo aqui – o final é hilário e vale a pena. Em vez de perder tempo em uatiszap da família, brigando com o primo imbecil ou a tia que acha que Darwin era um charlatão, assista ao vídeo.
Mas, resumindo (mas não contarei o final), para chegar em meu ponto, é o seguinte: na escola, um menino é repreendido pela professora ao escrever que 2 + 2 = 22. Nada mais normal, certo? Um aluno ou aluna em idade escolar chega na resposta errada, o professor ou professora corrige.
Pois é. Acontece que, talvez, já não mais seja bem assim. Os pais do aluno perguntam à professora: “Ora, quem é você pra dizer que sua resposta é certa, e a dele, errada?” O caso chega na direção da escola, nos outros professores, na mídia local, enfim… Long story short, a professora é demitida e a mídia repercute a demissão de uma “professora ativista que reprime o aluno por suas visões pessoais”.
A distopia do vídeo é genial porque mostra precisamente o estado da arte do direito brasileiro. “Ora, quem é você pra dizer que sua resposta é certa, e a dele, errada?”
Nem preciso dizer que o motivo central de estarmos mergulhados nessa crise judiciária é o relativismo semelhante ao 2+2=22-e-essa-é-a-minha-opinião. Os pais dos alunos venceram aqui no Brasil.
“Ora, quem é você pra dizer que sua resposta é certa, e a dele, errada?” Não é o aluno que está errado. Errada está a professora que enche o saco. Por que 2 + 2 não pode ser 22? Por que é errado sustentar que interpretar é um ato de vontade? Por que é errado sustentar que direitos humanos são só para humanos direitos? Ora, pois.
Como chegamos a isso? Como chegamos a esse sushi jurídico? Nós engendramos esse tipo de imaginário em nossa prática jurídica a partir do momento em que aceitamos a tese de que, bem, “tudo é relativo”. “Não há verdades”. “É questão de opinião”. Como no caso do menino, seus pais e a pobre da professora.
Acontece que nem tudo é relativo. Há verdades, e, mais do que isso, há critérios a partir dos quais se pode dizer qual é a verdade. Direitos humanos, direitos fundamentais, devido processo legal são conquistas civilizatórias. Se eu digo que não há verdades, como posso sustentar que é verdade que não há verdades? Se digo que todos mentem, sou um mentiroso; se digo que se pode dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa, estou dizendo aos leitores que o que digo nada significa.
Chegamos nessa estupidez institucionalizada porque permitimos que se deflagrasse, no Direito, a ideia de que respeitar o texto da lei significa uma aplicação mecânica, que proíbe a interpretação. Ora, é justamente e somente a partir da interpretação que se chega na verdade! Acreditar na possibilidade da “letra fria” [sic] da lei é coisa ainda do século XIX. Não se trata disso.
Da ideia de que estamos condenados a interpretar não se segue que vale tudo, e que o intérprete seja livre pra atribuir ao texto o sentido que quiser. Interpretar autenticamente significa respeitar a autoridade da tradição a partir da qual se pode chegar na resposta correta.
A quem interessa essa ideia de que se pode dizer qualquer coisa? É simples. Àqueles a quem cabe dizer essa coisa, seja ela qual for. Engana-se quem acha que o relativismo é uma arma da democracia, que permite a pluralidade de ideias; é justamente o contrário: é o relativismo que autoriza que, aquele que detém o poder, diga o que bem entender, o que bem quiser, e o azar é todo nosso. Porque dissemos que tudo era relativo.
Quem diz o que quer e atribui o significado que deseja a qualquer coisa é Humpty Dumpty, de Alice através do espelho. Pior: Humpties Dumpties segurando a concha de O Senhor das Moscas. Para quem não sabe, no livro de Golding, os meninos que sobrevivem a um desastre aéreo e passam a habitar uma ilha instituem – ao menos enquanto sua pequena democracia resiste – que só pode falar aquele que tiver a concha nas mãos.
Pois é. Humpty Dumpty, no Brasil, segura a concha. De forma institucionalizada. 2 + 2 = 22, e ai de quem disser o contrário. Este país é incrível. Vamos ganhar o Prêmio Ignóbil. Um deputado entrou com projeto, em 2018, para permitir que as pessoas andem armadas a bordo de aviões. Poxa. Se o mundo soubesse disso, já de há muito não haveria sequestros e atos terroristas. Si vis pacem parabellum. E eu vou estocar alimentos. Ou vou abrir uma loja de armas.
Vejam em que pé estamos no 2+2=22: já há quem diga – li isso na grande mídia (e não na deep internet) – que a proteção de direitos humanos é inimiga da polícia. Incrível ou crível? E um vereador de São Paulo afirma que a KKK – Ku Klux Klan – é de esquerda. A comunidade negra norte-americana deve ficar feliz com esse “achado histórico” do vereador paulista, por sinal, negro como os perseguidos – e mortos – pela KKK. Como a gente aprende coisas… Bom, já sabíamos que os negros foram os culpados por sua escravidão (os portugueses, disse-se, “nem pisaram na África”), agora sabemos mais um capítulo da história oficial (além do fato de já termos admoestado – e humilhado – os alemães por estes não entenderem nada de nazismo!). O vereador paulista deve ter estudado isso na Bullshit University II, no livro How to offend the US black community, da Extreme right press. Da mesma editora, o mais recente livro How to teach the art of white supremacy to KKK? And KKK is not laughing emoji. Taí a explicação: o “grande historiador contemporâneo” – nosso preclaro vereador paulista – achou que KKK era um emoji. Bingo. Meu Deus.
E, competindo para o Prêmio Ignobil, um delegado de polícia do RS afirma, de pés-juntos, que a suástica é um símbolo hindu. Vai ver que também pensou que era um emoji. E, pior: nada disso é fake news. Creiam. Ah: a terra é redonda, sim. Não é plana.
Post scriptum: Arquétipo do brasileiro médio 1: 23h59 min -“Eu prefiro ser revistado a cada esquina do que ser assaltado”. Um minuto depois: “Galera, onde tem blitz?”. Bingo. Arquétipo do brasileiro 2: Fila de espera de bagagem no aeroporto internacional. O sujeito classe média critica veemente o Brasil. “Assim não dá. Esperando faz 20 minutos as malas. Só no Brasil, mesmo. Falta lei e ordem”, e outras sandices. E o sujeito ao lado, interlocutor do “indignado”: “Onde está sua esposa, a Clarinha?”. E o “indignado”: “Clarinha está lá atrás, esperando as outras malas. Sabe como é, trouxemos muitas coisas de Maiame e vamos passar separados na alfândega; assim é mais difícil de nos pegarem”. Binguíssimo!
E 2+2 dá…, mesmo, 22! E, na livraria, um best seller: Como assar melhor o bacon. O prefácio é da lavra de um porco gordinho.
Lenio Luiz Streck é jurista, professor de direito constitucional e pós-doutor em direito.