Ao longo de uma estrada, em meio ao trânsito, topamos com várias placas, vários tipos de sinalizações. Avisos. Lembretes que, desobedecidos, tornariam o trânsito um autêntico estado de natureza hobbesiano. Pare. Vire à direita. Cuidado com a curva. Proibido ultrapassar. Proibido acima de 60 km/h. Estamos todos familiarizados com essas ordenações.
Gostaria de fazer com você, leitor, um exercício rápido de imaginação. Imagine-se em uma estrada, dirigindo, vendo — e obedecendo, espero — todas essas placas. Eis que, no meio do caminho, você vê uma placa em destaque, um pouco maior, luminosa, que lê o seguinte: obedeça à sinalização.
A placa das placas. Uma espécie de Grundplaca. Uma placa para lembrar que todas aquelas outras lá estão por um motivo muito simples: para serem seguidas.
Trago isso como ilustração porque penso em minhas colunas semanais como placas de trânsito, só que jurídicas. Lembretes. Sinalizações. Moral não corrige o Direito. A Constituição vale mais que a “voz das ruas”. Delações não valem por si só. O juiz deve seguir o Direito, e não sua consciência. Respeitemos o que diz o texto. E por aí vai.
A coluna desta semana é como a Grundplaca, a Placa fundante, a Placa-mãe. Obedeça à sinalização. Um aviso aos navegantes: siga o Direito; do contrário, afundaremos.
Vez ou outra, alguns episódios exigem isso. O de agora tem como protagonista o ministro Luís Roberto Barroso, para quem a recente decisão do Supremo acerca das conduções coercitivas seria uma “manifestação simbólica contra aprofundamento de investigações”. Um “esforço para desautorizar juízes corajosos”.
O que é um juiz corajoso? É o juiz voluntarista, que acha que o Direito atrapalha? É o que atende à voz das ruas? É o ativista que acha que pode administrar o Estado concedendo liminares? É o que concede 120 dias de licença-paternidade para um pai-que-é-funcionário-público? É um juiz que mandou fazer conduções agora declaradas inconstitucionais? Para mim, o juiz corajoso é o que faz o simples: cumpre a lei. Que segue rigorosamente a Constituição. É o juiz ortodoxo. É o juiz raiz e não o juiz nutella (para usar uma brincadeira das redes sociais). Contra tudo e contra todos. Corajoso é o que sabe que a Constituição é um remédio contra maiorias.
Mas querem saber o que é o mais louco disso tudo? Obedecer ao Direito é mais fácil! Não gostou do que diz a lei? Não concorda com o texto constitucional? Segure seu ímpeto. Você não é legislador. E nem constituinte.
Para mostrar isso, posso, inclusive, transitar por outros campos. Tomemos, apenas como ponto de partida, um positivista exclusivo como Joseph Raz, com sua tese de autoridade e as razões de segunda ordem. (E vejam que Raz é um autor que nem se preocupa com a decisão).
Vou explicar — da forma mais simples possível. Quando temos de agir, seja no que for, temos uma série de razões para tal, certo? Por exemplo, tenho vontade de ir à casa de um amigo, mas bebi cerveja. Tenho boas razões para comparecer ao seu aniversário. São as razões de primeira ordem. Quando optamos entre nossas escolhas sobre como devemos agir, decidimos entre o balanço de nossas razões para agir de primeira ordem. Nesse balanço, coloco a hipótese de que posso não ser pego em uma blitz. Do mesmo modo, sou juiz e sei que o réu é culpado. Tenho uma certeza “moral” de que foi ele quem cometeu o crime. Tenho razões de primeira ordem (no sentido de que fala Raz) para tacar-lhe uma pena pesada e ainda lhe esculachar.
Acontece que existem também razões de segunda ordem: essas razões são, nas palavras de André Coelho — ele próprio um positivista exclusivo, analítico da cepa —, “razões excludentes, porque excluem da consideração as possíveis razões em contrário”. Bingo. Uma razão de segunda ordem cancela todas as outras razões que você eventualmente tenha para agir. Nesse caso, a Lei Seca é uma razão de segunda ordem. E o CPP é a razão para que você não decida primeiro e depois “ache” um fundamento qualquer.
Com Raz, temos que a reivindicação de autoridade do Direito pressupõe razões jurídicas de segunda ordem (RJSO). O Direito cancela suas outras razões, distintas, para agir em contrário.
Tomo emprestada a tese de autoridade raziana para trazer meu ponto.[1]Veja que o Direito, ao trazer razões de segunda ordem, facilita sua vida. Parecido com isso, o que quero dizer é o seguinte:
Goste você ou não do que o Direito diz sobre as conduções coercitivas; ache você justo ou não que condenados sejam recolhidos à prisão antes do trânsito em julgado; prefira você, politicamente, ou não uma intervenção militar; pense você ou não que é bom que o ejaculador seja atirado aos leões; ora, tudo isso não importa. As RJSO fazem você — em uma democracia — suspender as suas razões de primeira ordem – RPO (seus desejos, suas vontades, seus preconceitos, suas vontades políticas, suas raivas, suas sexualidades, seu esquerdismo, seu direitismo, sua sabedoria, sua inópia mental etc.).
Sendo mais claro ainda: quando você está dirigindo, ninguém quer saber sua opinião sobre o limite de velocidade ou sobre a frequência com que os carros devem parar em cruzamentos perigosos. As RJSO salvam você de você mesmo. Essas razões jurídicas de segunda ordem evitam que você cometa erros que podem ser fatais. As RJSO fundam você, enquanto somente as razões de primeira ordem (RPO) podem afundar, a você e à sociedade. A democracia se funda no cumprimento das RJSO.
Deveria ser assim: você cumpre, porque sabe que, não cumprindo, vira bagunça. Lamentavelmente, faltou-nos um grau de ortodoxia em relação à maior de todas as RJSO: a Constituição. Talvez tenha nos faltado coragem. Aqui pode entrar o item (falta de) coragem. Sucumbimos às RPO e ignoramos as RJSO.
Por isso, uma dica: em uma democracia, ponha as culpas nas RJSO. Esse é o tipo de boa desculpa. Coragem é colocar as RJSO — porque é uma questão republicana — em primeiro plano. Mesmo que, no seu íntimo, as RPO fiquem cutucando. Coçando. Elas sempre são tentadoras. Como as sereias.
Portanto, pelo bem da democracia, sejamos, sim, corajosos: mas para obedecer às placas (RJSO). No trânsito e no Direito. Na dúvida, leia a placa que diz “obedeça às placas”. E se ainda tiver dúvida, vamos pressupor que você seja um bom motorista e um bom cidadão, que sabe o que querem dizer as placas e a placa mãe. Coragem!
[1] E antes que me digam que sou um positivista (no Brasil, há uma vulgata do conceito – por aqui, cumprir a lei ou propugnar pela aplicação da lei é tido como uma atitude positivista – pior, como se isso fosse uma coisa ruim!; logo, quem tiver postura voluntarista é tido como pós-positivista – esse, sim, “bem visto” e tido como corajoso), já adianto: sigo, como sempre fiz, criticando os gaps do positivismo e, principalmente, a sua despreocupação quanto ao modo como os juízes decidem. Dois pontos, porém, devem ser aduzidos; primeiro: respeito muito a relevância teórica dos positivistas contemporâneos, sérios; segundo, e mais importante: para poder criticá-los, procuro, antes, entender o que é o positivismo. Diferentemente de muitos pretensos “pós-positivistas” brasileiros, que acham que o mundo se divide entre o positivismo do juiz boca-da-lei (velho isso, não?) e o “pós-positivismo”, que é “qualquer coisa que se põe no lugar disso”. É fácil dizer que o positivismo foi superado e que “o juiz boca-da-lei morreu”, quando sequer se sabe o que é positivismo. Discursos vazios, desprovidos de compromisso teórico, servem apenas para dar vazão a posturas teleológicas – que são deletérias. A mim, não serve. Em nenhum dos sentidos.
Lenio Luiz Streck é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito