A negação da política e seus efeitos
O início dos anos 1990, com a eleição de Fernando Collor de Mello para a Presidência do País, anunciava mudanças estruturais na política e na economia. O neoliberalismo e o mercado-deus-absoluto se exibiam triunfantes diante do esfacelamento da antiga URSS e seus satélites. Collor seria o “novo”, a personificação da modernidade, do Estado mínimo e da juventude bem-nascida que chegava ao poder.
Estava em curso, então, uma campanha de mídia sem precedentes, capaz de transformar um notório playboy em “caçador de marajás” do serviço público. Governador de Alagoas sob a proteção de coronéis agrários e chefes da ditadura agonizante, o herói regional foi adulado pelos veículos de comunicação de massa e se tornou presidente na eleição de 1989, a primeira direta para o cargo desde o fenômeno Jânio Quadros e sua vassoura de varrer corrupção, em 1960. Assim como a de seu precursor distante, a carreira de Collor se escorou num discurso de negação da política. Nos dois casos, o desprezo pela complexidade dos arranjos partidários fez com que os mandatos conquistados nas urnas não chegassem ao fim. Sem apoio do Congresso Nacional, Jânio renunciou ao tentar um golpe que lhe daria mais poderes. Collor sofreu um processo de impeachment que também o fez renunciar, sozinho e distante dos seus criadores.
O avanço do neoliberalismo
A formação da “República de Alagoas”, encabeçada pelo presidente eleito em 1989, estabeleceu parâmetros para a reorganização do Estado brasileiro. Tratava-se, na prática, de suprimir as garantias sociais incorporadas pela Constituição de 1988 e oferecer maior liberdade de circulação ao capital especulativo. Logo que assumiu, a equipe de Collor bloqueou depósitos em cadernetas de poupança e promoveu uma reforma administrativa esdrúxula, que pisoteou o funcionalismo público, arrancando-lhe direitos adquiridos e realizando demissões em massa.
O governo agia à margem da lei, mas obediente aos conselhos de marqueteiros que começavam a invadir o cotidiano da política. Na televisão, principalmente, Collor aparecia fantasiado de esportista, exercitando-se nas ruas de Brasília, brincando de jet-ski ou passeando em jatos supersônicos. O seu estafe era formado por executivos bem-sucedidos, gente de pouca idade, cabelos engomados e roupas de grife. Eram yuppies. Mas também eram canastrões, como o tempo se encarregou de mostrar.
Colaboravam com o poder, entre muitos outros da mesma linhagem política, um manipulador de recursos de campanha eleitoral, uma economista desconhecida, um sindicalista pelego, um advogado fissurado em boleros e, em escala inferior, um cidadão que ficou célebre por fechar supermercados em nome do “plano Sarney”, em 1986. Previsivelmente, o projeto não vingou. O coordenador do esquema de propinas, Paulo César Farias, foi encontrado morto num balneário de Alagoas, em 1996. Zélia Cardoso de Mello, a “mãe” do plano econômico fracassado, sumiu do mapa, assim como Bernardo Cabral, o jurista acaciano e galanteador, Antônio Rogério Magri, o falso líder operário, e Omar Marczinsky, o fiscal da Sunab, que já faleceu. Houve quem sobrevivesse à tempestade por mais tempo, como Renan Calheiros, que chegou à Presidência do Senado Federal, Roberto Jefferson, deputado da “tropa de choque” que articulou contra o processo de impeachment, em 1992, Eduardo Cunha, antigo chefe da companhia telefônica do Rio de Janeiro e presidente da Câmara dos Deputados em 2015, e tantos mais, além do próprio Collor, feito senador após um período de ostracismo.
Os próceres da República de Alagoas deixaram um rastro de ações desastrosas, constrangedoras. Merecem registro somente pelos prejuízos que causaram à sociedade, decorrentes do mau uso do poder que detinham, e não por motivo de honra. Não seria estranho se conquistassem um naco de protagonismo nos dias de hoje, da comunicação virtual e instantânea, em que a moda é ser outsider político, é odiar o Estado, reproduzir clichês de preconceito e ignorância e enxergar na administração privada o centro do progresso. De qualquer modo, ainda que fosse assim, a história lhes reservaria o esquecimento merecido.
Direitos ameaçados, como sempre
O ataque aos direitos da maioria do povo brasileiro não cessou com o fim da era Collor. Fernando Henrique Cardoso, anos depois – e com eficácia muito maior –, comandou a liquidação do patrimônio público. Privatizou as telecomunicações e a mineração, e só não entregou completamente a Petrobras e outros órgãos estatais à voracidade do capital internacional porque lhe faltaram tempo e capacidade de enfrentar a resistência dos trabalhadores. Mesmo assim, conseguiu aprovar, mediante uma escandalosa troca de favores com membros do Congresso Nacional, a sua própria reeleição e a primeira etapa de uma reforma previdenciária que massacrou os pequenos contribuintes, apontados como responsáveis pelo que se convencionou chamar de “colapso do sistema”.
Seguiram-se quatorze anos de governos comandados pelo Partido dos Trabalhadores. Governos de conciliação de classe, de programas assistencialistas que não mudaram a estrutura desigual da sociedade, embora tenham sido importantes para aqueles que ainda vivem na miséria. Fundamentalmente, governos de cooptação de lideranças sindicais e populares e de relativa abertura para que movimentos sociais buscassem o atendimento de suas demandas por dentro do Estado. O núcleo duro petista, contudo, além de não interromper as medidas privatizantes forjadas em períodos anteriores, absorveu a corrupção como método, tal como sempre fizeram seus antigos inimigos, na busca de prorrogar o seu passeio pelos campos atraentes do poder.
Para prefeito, um macaco
A rejeição aos políticos não é fenômeno recente. Entre tantas situações conhecidas, tome-se uma como destaque: o desempenho eleitoral extraordinário do macaco Tião, um habitante do zoológico do Rio de Janeiro, no pleito municipal de 1988. Lançado candidato por um grupo de humoristas “politicamente incorretos”, Tião obteve 9,5% de votos para prefeito. Ficaria em terceiro lugar na disputa, caso a sua inscrição não passasse de uma brincadeira (DAPIEVE, 2008: 14).
Esse escracho se deu num ambiente de renovação política, tão logo foi promulgada a nova Constituição, um documento que consolidava garantias democráticas negadas pelo regime militar. As afinidades entre os titulares de mandatos no Legislativo e no Executivo e seus potenciais eleitores eram poucas, sem dúvida, mas havia uma centelha de esperança que aproximava os brasileiros. Pensava-se coletivamente na construção de uma sociedade mais justa. Não por acaso, a eleição presidencial (aquela primeira, em 1989) foi intensamente disputada, e deu a Collor de Mello uma vantagem ínfima sobre Lula no turno decisivo. Collor representava a elite conservadora, a concentração de riquezas e a desigualdade social; Lula, o ex-metalúrgico e sindicalista do ABC de São Paulo, incorporava um pouco do radicalismo da esquerda. Era possível identificar, naquele momento, dois projetos inconciliáveis, diferentemente do que se daria nas eleições seguintes, em que PT e PSDB, únicas forças com chances de vencer, se confundiram na defesa de programas de governo desprovidos de conteúdo e temas polêmicos.
Junho sem partido
Em junho de 2013, milhões de pessoas protestaram nas ruas das grandes cidades. O estopim do movimento, que rapidamente ganhou dimensão nacional, foi o reajuste do preço das passagens de ônibus em São Paulo. Eram atos mais ou menos espontâneos e sem uma pauta de reivindicações específica, convocados pelas redes sociais e impulsionados por uma juventude disposta a atropelar a institucionalidade. A interpretação daquele momento feita por grupos políticos convencionais, tanto os situados no campo doutrinário da esquerda quanto os da direita, não foi além de respostas enviesadas e confusas. Pouca gente parecia compreender o que estava acontecendo.
As manifestações se multiplicaram sem perder o seu eixo central, de contestação. Um problema, no entanto, se insinuava: em meio a palavras de ordem que chamavam a população para a “luta”, sindicatos, partidos políticos e movimentos sociais foram hostilizados ou expulsos, obrigando-se a recolher suas bandeiras e abandonar as passeatas. Discretamente, algumas vozes anteciparam um discurso que se fortaleceria nos anos seguintes e, a pretexto do combate sem trégua às mazelas do País, introduziria um modo simplista de “fazer política”. Dividindo a sociedade entre bons e maus, corruptos e honestos, comunistas e patriotas, religiosos e ateus, esse pensamento, de viés conservador, alimentou uma crise que levaria ao impeachment de Dilma Rousseff e à ascensão de Michel Temer à Presidência da República, em 2016. Começava a ser vendida a ideia de acabar com a corrupção pelas mãos de uma liderança messiânica.
O ano, agora, era 2014. Investigações da Polícia Federal que haviam sido iniciadas em 2009, com o indiciamento do então deputado federal José Janene, morto em 2010, prometiam desvendar um esquema de propinas gigantesco, que contava com a participação de empresários nacionais e membros do governo e do parlamento. Estava lançada a operação Lava-Jato, sob a batuta de um herói oportuno.
A República de Curitiba
Com a polarização que marcou as eleições de 2014, vencidas pelo PT por muito pouco, setores derrotados nas urnas se animaram a buscar soluções que os livrassem de Dilma Rousseff antes de 2018, quando o mandato da eleita chegaria ao fim. Denúncias de fraude eleitoral, erros no sistema eletrônico de apuração de votos e outras irregularidades foram feitas pelo PSDB, que acionou o Poder Judiciário na tentativa de dar a Aécio Neves uma vitória que nunca lhe pertenceu. Essas manobras, como era de se esperar, não prosperaram, mas serviram para confirmar a fragilidade do governo empossado em 2015, que se obrigou a fazer concessões cada vez maiores aos chefes da banca financeira. O PT no poder, domesticado desde a invenção midiática do “Lulinha Paz e Amor”, algum tempo antes, não ameaçava o capital e seus controladores. Mesmo assim, era interessante, no mínimo, “sangrar Dilma”, como cogitaram setores do tucanato após as manifestações de março de 2015, marcadas pelo predomínio de uma visão política de traços autoritários. Não havia, para esses grupos, necessidade do impeachment, mas os fatos que vieram na sequência abriram oportunidade para o afastamento de Dilma e a aceleração de reformas ainda não concluídas, que pretendem aniquilar direitos sociais constitucionalizados em 1988.
No centro disso tudo, o Poder Judiciário cumpriu papel determinante. Os protestos que vieram depois de junho de 2013 coincidiram com a afirmação da Lava-Jato e o encarceramento de empresários e políticos envolvidos em esquemas de corrupção. A figura de Sérgio Moro, um magistrado jovem e combativo da Justiça Federal, se tornou popular e inspirou o surgimento da “República de Curitiba”, apelido utilizado por Lula para denunciar o possível caráter golpista da Lava-Jato. A nova expressão foi imediatamente incorporada pelas redes sociais simpáticas a Moro, que a livraram de comparações negativas com a “República do Galeão”, centro de investigações da crise política que feriu de morte o segundo período de governo de Getúlio Vargas, em 1954. A Curitiba de Moro, então, passou a simbolizar os valores da ordem, da disciplina e do rigor punitivo (também conhecido como “prendo e arrebento”).
A Justiça no centro dos debates políticos
As operações da Lava-Jato, com todos os seus desdobramentos, estão diretamente ligadas aos acontecimentos políticos recentes. Não haveria impeachment sem as intervenções de Moro e seus colaboradores. Com avanços e recuos, vazamento ilegal de conversas telefônicas, prisões arbitrárias, equívocos e adaptação das normas processuais a conveniências de momento, essas intervenções contribuíram para alterar a correlação de forças no Congresso Nacional, retirando a maioria parlamentar do antigo governo e permitindo a aceitação do pedido de impeachment, ainda que faltassem elementos para caracterizar a prática de crime de responsabilidade por Dilma Rousseff.
O protagonismo de juízes, policiais e membros do Ministério Público em questões de natureza política não chega a caracterizar uma distorção do “sistema”. No Brasil pós-Constituição de 1988, “a consolidação da democracia alargou a importância do Judiciário”, como observa Campilongo (1992: 30). Esse fenômeno, porém, merece ser visto com cautela. Magistrados como Moro e procuradores como Deltan Dallagnol, famoso por transformar uma peça acusatória em powerpoint, por exemplo, costumam se apresentar publicamente como autoridades isentas de preferências ideológicas, escravos da lei, prolatores de sentenças e pareceres equidistantes das partes, neutros. Ao mesmo tempo, seguem expostos, sem constrangimento, às luzes da mídia e a homenagens de bajuladores do poder. São tímidos espalhafatosos, ao estilo de Dallagnol, que visitou a redação de um jornal acompanhado de um marqueteiro aparentemente contratado para moldar a sua imagem de guardião da moral e dos bons costumes.
Em estudo sobre o funcionamento do Poder Judiciário, Koerner (2013: 25 e 30), adotando o pressuposto de que direito e política têm implicações recíprocas, defende que o pesquisador da ciência política, quando confrontado com uma tomada de posição jurídica, deve estar atento à relação de poder que envolve, de forma implícita, os conceitos e as teorias utilizados, assim como as peculiaridades da linguagem jurídica. Afinal, “nas frestas das decisões dos juízes, imiscuem-se argumentos; e, através de preconceitos sociais e opiniões ingênuas, que se cristalizam em ideologias profissionais, introduzem-se interesses não confessos, ao invés de bons argumentos” (HABERMAS, 2003: 227-228). Esse cuidado de análise deveria estender-se aos cientistas do direito, com prioridade à compreensão de quem está à frente dos processos que formam o objeto dos seus estudos. No cenário atual, todavia, não é o que acontece. Os “meninos de Curitiba” foram alçados à condição de heróis de plástico, sem passado e sem história, a repetir conceitos puramente técnicos e, por consequência, infalíveis. Com isso, receberam passe livre para desenvolver um ativismo disfarçado de neutralidade, sob os aplausos do respeitável público.
Canastrões em cena
A República de Curitiba não é a República de Alagoas dos anos 1990, o que não significa dizer que não existem semelhanças entre elas. Uma e outra encontraram na juventude e no vigor de seus personagens um meio para a conquista de apoio popular. As duas prometeram mudanças baseadas no carisma dos seus líderes, idealmente capacitados a promover justiça e assegurar um futuro melhor para o País. No final, tanto Alagoas como Curitiba produziram – ou vêm produzindo – canastrões, entre outros resultados importantes ou desastrosos.
Na carona da Lava-Jato, burocratas do submundo político e jurídico despontaram para a glória instantânea. Há muito de grotesco, mas também de perigoso, nas performances político-religiosas de Janaína Paschoal, do triunvirato que protocolou o pedido de impeachment no Congresso. Ou na recorrência com que o “japonês da Federal” – na verdade, um tira condenado pela prática de ilícitos funcionais, inspirador de outra figura estranha, o “hipster da Federal”, de passagem rápida pelos holofotes da mídia – se pôs a conduzir alguns figurões ao xadrez prestigiado de Curitiba. Ou na ânsia de incriminar um ex-presidente revelada pelos promotores paulistas que confundiram Engels com Hegel, numa denúncia inconsistente, transformada em angu filosófico.
O Brasil atual é o Brasil de Temer e seu ministério sombrio. Um Estado policialesco, esvaziado de compromissos sociais, com o apoio de organizações de extrema direita e celebridades à Alexandre Frota. Não há democracia que resista a tamanha “renovação” de hábitos políticos.
Soluções fenomenais
A ojeriza que os instrumentos tradicionais da política provocam em pessoas “comuns”, além de antiga, como acentuado antes, não é exclusividade de brasileiros. Esse sentimento afeta outros povos, também, e é típico da crise que atinge as democracias representativas. O perigo surge quando, em oposição aos políticos, apresentam-se alternativas mirabolantes e personagens bizarros. Em 1988, o País se livrava da ditadura fardada para ingressar num regime formalmente democrático. Naqueles dias, o sucesso eleitoral do macaco Tião foi recebido como deboche, simplesmente. Hoje, na sociedade dos avanços tecnológicos que permitem a todo mundo ter “opinião formada sobre tudo”, seria levado a sério. A tolerância, como se sabe, está em baixa, e esse estado de (mau) humor coletivo incentiva comportamentos nem sempre orientados pela razão e pelo equilíbrio. Para curar uma doença crônica e secular – a corrupção –, a fórmula consagrada pelo pensamento hegemônico é tão singela quanto enganosa: espalhar pelo mundo real ou virtual “exércitos do bem”, a bradar por ordem, progresso, deus, pátria, família e propriedade.
Saudades do velho Tião.
REFERÊNCIAS
CAMPILONGO, Celso Fernandes. Os desafios do Judiciário: um enquadramento teórico. In: FARIA, José Eduardo (Org). Direitos humanos, direitos sociais e justiça. São Paulo: Malheiros Editores, 2010. p. 30-51.
DAPIEVE, Arthur (Org.). Antologia Casseta Popular. Rio de Janeiro: Desiderata, 2008.
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. v. 2. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.
KOERNER, Andrei. A análise jurídica do direito, do Judiciário e da doutrina jurídica. In: WANG, Daniel Wei Liang (Org.). Constituição e política na democracia: aproximações entre direito e ciência política. São Paulo: Marcial Pons, 2013. p. 23-52.