A correção monetária de depósitos judiciais agora baseada em um índice inflacionário — e não mais na taxa Selic —, feita quando o valor é levantado pelo credor que litiga contra a União, é anti-isonômica e inconstitucional. Além disso, a mudança — estabelecida pela Lei 14.973/2024, com a qual a União tenta ampliar receitas primárias com o resgate de depósitos — pode ter efeito no sentido oposto, uma vez que irá desestimular o uso dessa via por contribuintes em casos tributários. A avaliação é de advogados ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico.

Correção pela inflação – O depósito é usualmente utilizado para suspender a exigibilidade de um tributo enquanto tramita processo contra a legitimidade do crédito, possibilidade prevista pelo Código Tributário Nacional. Ao fazer isso, o contribuinte evita uma série de sanções, como inscrições no Cadastro Informativo de Créditos não Quitados do Setor Público Federal (Cadin) e na Dívida Ativa da União, protesto da Certidão de Dívida Ativa e a não emissão de certidão de regularidade fiscal. Quando o contribuinte vence o litígio, ele pode levantar de volta o valor depositado. Até então, o montante devolvido era corrigido pela Selic, a taxa básica de juros da economia brasileira, em acordo com a Lei 9.703/1998. Ela foi revogada pela Lei 14.973/2024, que prevê agora no inciso II de seu artigo 37 a “correção monetária por índice oficial que reflita a inflação”. A regra vale para processos judiciais ou administrativos em que figure a União, qualquer de seus órgãos, fundos, autarquias, fundações ou empresas estatais federais dependentes.

Inconstitucional e anti-isonômica – Para o advogado tributarista Ailton José de Andrade Junior, a mudança é inconstitucional, tendo em vista que a Emenda Constitucional 113/2021 estabeleceu, em seu artigo 3º, a incidência da Selic “nas discussões e nas condenações que envolvam a Fazenda Pública”. Além disso, ao se considerar contribuintes em situações equivalentes, ela se mostra anti-isonômica. “O tributo objeto de pedido de repetição de indébito, ressarcimento ou compensação, continuará sendo corrigido pela Selic, correspondente à correção monetária somada aos juros, ao passo que o depósito judicial será corrigido apenas pelo índice de correção monetária”, diz. “Pensando em uma discussão judicial, o contribuinte que opta por pagar o tributo ao longo do processo e ao final pedir uma repetição de indébito ou compensação, terá um proveito econômico maior que o contribuinte que optou por fazer o depósito judicial”, argumenta Andrade Junior.

Indexador de correção – Leonardo Gallotti Olinto faz coro à crítica: “Veja que o depósito, quando efetuado pelo contribuinte, já fica à disposição do Poder Executivo. Há uma rubrica do Orçamento que é justamente sobre os depósitos realizados, o que significa dizer que o Estado usa o dinheiro do contribuinte e depois irá devolver por um índice diferente do que ele mesmo aplica para atualizar seus créditos”. Alexandre Rossato da Silva Ávila, advogado e juiz federal aposentado do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, reforça que a falta de isonomia também fica expressa no tratamento dado às causas ganhas pela União. “Ao passo que os créditos em favor da Fazenda são atualizados pela taxa Selic, aqueles em favor do contribuinte vão ser atualizados por um índice que não se sabe, na verdade, qual é”, afirma. Ávila faz uma crítica com a qual concorda Olinto. Para ambos, a descrição na lei do indexador inflacionário de correção é genérica. O governo federal adota o IPCA como o índice oficial de inflação do país, mas o uso dele não fica explícito na nova legislação. “O texto deixa a critério do Executivo de plantão eleger qual índice aplicar, e isso causará enorme insegurança, especialmente ao se levar em conta que as causas levam anos para ser julgadas”, avalia Olinto. De todo modo, se for mesmo adotado o IPCA, o prejuízo ainda será considerável. Em 12 meses contados até agosto deste ano, o indicador teve alta acumulada de 4,24%. Já a Selic está atualmente em 10,75%.

Compensações à desoneração – A lei que alterou a correção é a mesma que estabeleceu o fim gradual da desoneração da folha de pagamento para 17 setores da economia, recém-sancionada pelo presidente Lula (PT). Alvo de discussão do governo com o Congresso Nacional, o texto só ganhou consenso ao também dispor compensações à União pela perda na arrecadação. Parte delas diz respeito aos depósitos judiciais. Desde o ano passado, o governo federal tenta acelerar o repasse desses valores, retidos a priori pela Caixa Econômica Federal, para Conta Única do Tesouro Nacional — um dos esforços para viabilizar a meta de déficit fiscal zerado. Em janeiro deste ano, um pente-fino coordenado pela Advocacia-Geral da União identificou R$ 15 bilhões represados pela Caixa que deveriam ter sido repassados à União. Conforme noticiou o jornal Folha de S.Paulo, o governo cogitou taxar o ganho de credores na altura em que eles retomam os depósitos. Optou-se, no entanto, pela mudança no índice de correção, sob o entendimento da equipe econômica, ainda conforme publicou o jornal, de que não há incidência de juros de mora enquanto não há atraso no pagamento.

Depósito menos vantajoso – Para Ávila, a mudança na correção pode acabar, no entanto, por desestimular os depósitos. “O contribuinte vai agora avaliar se não é mais benéfico obter a suspensão de exigibilidade do crédito a partir de outras formas previstas no CTN que não dispender de recursos para efetuar um depósito cujo valor ficará atrelado ao resultado final do processo”, explica. Ele cita a possibilidade de se ajuizar um pedido de liminar em mandado de segurança, embora reconheça que o depósito é uma medida menos burocrática, em que a suspensão não depende do aval de um magistrado. A melhor estratégia dependerá, portanto, de cada caso. Andrade Junior reitera essa avaliação: “A depender do tipo de processo, se preventivo ou repressivo, a opção do depósito pode se tornar menos vantajosa, podendo ser preferível uma garantia com menor liquidez, pensando em uma execução fiscal”.