Leio que, face à delação da Odebrecht (a Moab –Mother Of All Bargains) e do desgaste da política (e do Direito), muita gente começa a ressuscitar a tese da Assembleia Constituinte. Na crise, não criamos. Atalhamos. Explico: quando vejo o jornal Estadão colocando a tese em editorial, fico arrepiado. Afinal, o mesmo Estadão festejou a derrocada da Constituição de 1946 ao declarar apoio ao golpe de 1964, postura também seguida pela Folha e outros veículos como, é claro, O Globo (e também a OAB).
É isso que me preocupa. Vejam no que deu. Demoramos mais de 25 anos para voltar à democracia. Construímos uma Constituição democrática. Mas não a cumprimos. Houve um incentivo ao seu descumprimento. Pronto. A solução? Simples: façamos uma nova. Bingo. Para um problema complexo, uma resposta simples… E errada.
Um sintoma: lembro de uma palestra de um jovem que assisti há uns dez anos. Ele era mestre e doutorando em Direito, usava kit carreira jurídica (terno bem cortado e chave de Audi A4 à mostra) e gritava: “Interpretar a lei é um ato de vontade; tudo é subjetivo; não há verdades” (onde esse menino estudou?). Além de o desmentir publicamente — confesso que cheguei a ser deselegante (não faria isso de novo, hoje, desse modo rude) —, quando terminei minha fala, ainda fiz uma observação: “Isso tudo ainda vai sair muito caro para a democracia”. Dito e feito.
Minha lhana crítica – Nesta coluna, quero dizer o que penso sobre tudo isso, com todo o respeito e lhaneza aos que propugnam por uma nova Constituição. Fui rude com o jovem. Já não sou assim. Portanto, por favor, quem assim pensa não se sinta nem acusado nem ofendido. Sinta-se homenageado, porque suscitou o debate, que, por óbvio, transcende à tese de uma nova constituinte. Mas transcende, mesmo. Assim, sigamos. Primeiro: quem faria a nova Constituição? Legisladores da Noruega? Quem elegerá os constituintes? Os 35 partidos – existentes, aliás, por um julgamento ativista do STF, que disse ser inconstitucional (até hoje não entendi por quê) a cláusula de barreira? Ah: quem será que colocou os atuais parlamentares no Congresso? Vamos trocar de eleitor?
E vejam a bizarrice. Temos mais de mil faculdades de Direito, dezenas de milhares de professores (de Direito), carreiras jurídicas que devem chegar a duas dezenas, dependendo de como contarmos as advocacias públicas (todas, incluindo as Defensorias, ganhando mais de R$ 22 mil de salário inicial, algumas carreiras ainda recebendo honorários e incentivos por cobrança de tributos), além da pesada máquina dos tribunais de Contas, Controladorias etc., e o diagnóstico é o de que temos de fazer uma nova Lei Maior? Fracassamos? Mas, então, a coisa vai mal por causa da CF ou porque falhamos nas nossas atribuições de juristas? E não seria (também) porque fiscalizamos mal, burocratizamos a máquina ao extremo, criamos cargos a mancheias, transformamos o país em uma “concursocracia”? Os políticos “fizeram a parte deles”, se me permitem o sarcasmo… Mas os juristas também “fizeram a sua parte”. E como fizeram.
Querem ver? A primeira falha do espectro jurídico foi a de não saber identificar o seu objeto — o direito. Um bom positivista contemporâneo poderia ensinar muito a essa gente que confunde direito e moral (no plano analítico, é claro — mas que é extremamente útil). Qual é o erro? Porque respondemos a qualquer assunto jurídico com a opinião pessoal ou com a moralização da resposta. Antes do direito… Colocamos a moral, a política etc. Resultado: a fragilização do objeto — o direito. Agora mesmo, quando defendemos uma nova Constituição, estamos, nitidamente, raciocinando moralmente. Dizemos: a culpa é da Constituição. “Façamos uma nova”. Fetiche da lei. Logo quereremos substituí-la por outra. Constituição virou um produto descartável. Minha resposta: não adiantará, porque, com essa comunidade jurídica, com esses operadores (sic), pode ser feita a constituição ideal-fundamental, a Grundverfassung ou a Moal (Mother Of All Laws – a mãe-de-todas-as-leis) e… Nada mudará.
Como culpar a Constituição pela incapacidade dos juristas de aplicar o Direito, ensinado nas faculdades por — pelo menos uma parcela razoável — professores mal preparados (estou sendo generoso), que “ensinam” as maiores barbaridades aos incautos alunos? Esses incautos logo se formam e fazem concursos, depois de passarem por cursinhos ministrados (em grande parte deles) por professores que ensinam por decoreba e por pegadinhas (para dizer o menos).
De que adianta uma nova Constituição se, nos concursos públicos para as carreiras que a irão aplicar, são feitas perguntas que não passam de pegadinhas e exercícios de memorização, sem falar nos Caios, Tícios, teorias da graxa, pamprincipios, hiperbolismos etc.? Chegamos a este ponto:técnicas de chutes para concursos. Tem muito disso. E ensinam crime tentado com “beijinho no ombro”. Tem até um professor (que também é juiz) que inventou a técnica do “chute consciente”. Bingo. O Brasil é demais. Afora tudo o que mostrei na coluna sobre a concursocracia e a teoria da graxa, descubro a cada dia coisas novas, como Jusjitsu – a arte do concurseiro. É, de fato, precisamos de uma NCF… Para nela fazer constar um dispositivo para impedir esse tipo de coisa. Repito: a culpa é da Constituição? Do CPP? Do NCPC? Do “badanha”? Do “bispo”?
Como querer uma nova Constituição se acabamos de aprovar um NCPC do qual sequer conseguimos fazer cumprir dispositivos que determinam o básico — como o dever de coerência e integridade, além da fundamentação detalhada? Quem está cumprindo o artigo 10? E o 489? E o 926? Então, de novo: quem vai aplicar a NCF? Os que hoje não cumprem o NCPC ou a atual Constituição? Os que não cumprem o CPP?
Imagino o futuro: sai a NCF e, dias depois, as livrarias estarão atulhadas de novos livros. E centenas de congressos. E fóruns (permanentes) para elaboração de teses sobre os dispositivos dessa NC (claro, as teses exigem unanimidade para “valerem”). Bingo de novo. Ou não é assim? Desmintam-me. Nosso sonho é voltar ao século XIX, no positivismo clássico: dar respostas antes das perguntas. Fazer conceitos sem coisas. Imitar o legislador (e “fazer-melhor-que-ele”). E escrever novos livros tipo: NCF Facilitada; NCF Descomplicada… E começa tudo de novo.
Pergunto, lhanamente: quem vai aplicar e doutrinar sobre essa tal NCF? Os que, mesmo que o NCPC tenha dito que não há mais livre convencimento, dizem — e escrevem — que o legislador é mero detalhe (há gente que pensa como Llewellyn, em The Bramble Bush, para quem “leis constituem lindos brinquedos”) e que o que vale é o livre convencimento como persuasão racional? Ora, ora, meus caros noruegueses e/ou dinamarqueses… Se fazemos isso com o NCPC, assim agiremos em relação a uma eventual NCF. Para, de novo, dizermos o que queremos sobre o seu conteúdo. Para exercermos a nossa Wille zur Macht (vontade de poder). Para ficarmos bradando em palestras e vender muitos livros, dizendo que o Direito é, ao fim e ao cabo, o que o Judiciário diz que ele é.
Já vi esse tipo de filme. Marcelo Cattoni, Gilberto Bercovici, Martonio Barreto Lima e eu já escrevemos sobre isso . E eu quero dizer que lutei muito pela Constituição de 1988. Esta que muitos dizem já não ter mais serventia. Fiz 37 palestras sobre Assembleia Constituinte entre 1985 e 1987.
Temos de apostar na democracia. No Estado (Democrático) de Direito. E, mesmo no entremeio de uma crise desta monta que faz o delírio da Globo News e do Jornal Nacional, mantenho o otimismo. Não devemos ter a ilusão de que possa existir uma sociedade sem vícios. Aliás, sempre lembro da fábula mais liberal do mundo, a das abelhas (Barão de Mandeville): vícios privados, benefícios públicos (que o pessoal da teoria da graxa deveria ter lido).
Para quem quer uma “nova Carta”, pense em como seria a parte que trata dos direitos fundamentais. Já imagino um dispositivo dizendo: pena de morte e perpétua poderão ser estabelecidas após aprovadas por plebiscito; delações poderão ser feitas em todas as modalidades de crimes, dispensada a presença de advogado se o réu desde logo optar por delatar ou aceitar a barganha; para crimes cujas penas são superiores a 10 anos, a prisão será obrigatória (repristinando o que havia antes da lei Fleury)… E assim por diante. E um dispositivo será assim: acima das leis e da CF está a justiça e o direito natural; nos casos de flagrante injustiça da lei, aplicar-se-á a fórmula Radbruch (isso dará boas questões para os futuros concursos no novo regime constitucional — os cursinhos passariam a ensinar a fórmula Radbruch… E logo fariam com ela o que fizeram com a ponderação; e também fariam paródias musicais). Bolsonaro poderá ser o relator.
Moral da história: antes de desistirmos das leis e da atual Constituição, seria bom que começássemos por cumprir o ordenamento. Seria bom receber as denúncias sem usar formulários tipo “defiro os requerimentos do MP acaso existentes”; passar a cumprir o CPC (inclusive fazendo-o valer no processo penal no que tange à fundamentação); não responder os embargos de declaração como se respondia no CPC/73; parar de inverter o ônus da prova em processos de furto e tráfico; fundamentalmente, parar de corrigir o Direito (sim, o Direito, o produto com o qual trabalhamos, porque, ao que sei, direito não é moral, não é política, não é filosofia moral etc.) a partir de nossas opiniões pessoais. Se cumprirmos as leis e a CF, chegaremos à conclusão de que uma lei só pode não ser aplicada em seis hipóteses. É o primeiro passo.
Necessárias críticas à entrevista da ex-ministra Eliana Calmon
Sei que entrevistas podem falsear o que o entrevistado falou. Mas como não houve desmentido, presumo que o que está escrito foi dito. Falo da ex-ministra Eliana Calmon, que disse:
“Hoje, o Judiciário mudou inteiramente. Todo mundo quer acompanhar o sucesso de Sergio Moro. Os ventos começam a soprar do outro lado. Antigamente, o juiz que fosse austero, que quisesse punir, fazer valer a legislação era considerado um radical, um justiceiro, como se diz. Agora, não. Quem não age dessa forma está fora da moda. Está na moda juiz aplicar a lei com severidade”.
Pois é, ministra. Mas o que é isto — cumprir a lei com severidade? Ao que entendi, cumprir “com severidade” a lei é “condenar”. E talvez “aplicar a lei com severidade” seja o que o STJ decidir que o condenado pode cumprir pena em regime mais grave do que o do decorrente da pena. Ou o juiz que mandou desalojar 300 famílias (em 300 mil hectares) li-mi-nar-me-nte e sem ouvir o MP? Mas, segundo a decisão, foi sob “a proteção de Deus”… Ah, bom. O que é isto — cumprir a lei com severidade (sic)? É receber denúncia em formulário? É inverter o ônus da prova? Como é mesmo ficar “na moda”? Eu sou démodé. Ainda uso pomada Minancora.
Pode ser também que estar na moda é (deixar) vazar informações, que, para a ex-ministra, são meros pecados veniais (sic). Pecadilhos (por isso não surpreende que um site tenha transmitido ao vivo o interrogatório de Marcelo Odebrecht diretamente da audiência de Curitiba para o mundo). De novo: como não houve desmentido, tenho que o que a ex-ministra disse foi exatamente o que está na entrevista. Vejam a gravidade: ela confessou que, como ministra do STJ: “Vi muitas vezes o vazamento de informações saindo da Polícia Federal e nada fiz contra a PF, porque entendi qual foi o propósito”. Veja-se: “Vazamentos de informações”. Mas, vejam a ironia da coisa: o propósito era para “o bem”. Pergunto: como descumprir leis pode ter um bom propósito? No final da entrevista, a ex-ministra diz que, como juíza, “sempre agi como Sergio Moro”. Sem comentários adicionais de minha parte.
Numa palavra: parece que estar na moda — no Brasil — é aceitar a tese de que “os fins justificam os meios”. E tem gente querendo fazer uma NCF… Quem vai cumprir a NCF? Lembro-me, de novo, do jovem processualista palestrante que gritava que “interpretação é um ato de vontade” e outros quejandos. De fato, lendo a entrevista da ex-ministra, vejo que o menino com seu kit carreira jurídica tinha chão fértil para fazer florescer suas teses.
O brilhante promotor de Justiça e doutor em Direito Elmir Duclerc resumiu o que ele denominou de pérolas do surrealismo processual penal contemporâneo (publico aqui uma parte, sem sua licença): 1) condução coercitiva que não implica restrição à liberdade de ir e vir; 2) presunção de inocência que não impede a execução provisória da pena; 3) regime inicial que já inicia mais grave; 4) ônus de provar sem provas; 5) gravações ilegais e sigilosas publicadas e audiências de instrução (públicas) que não podem ser gravadas; 6) Estado Democrático com medidas excepcionais; 6) delação “espontânea” de quem está preso. E eu poderia acrescentar um rol de outras pérolas. Que ocorrem nas demais áreas. Bem, algumas já estão delineadas na coluna.
Artigo de Lenio Luiz Streck, jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito