Mecanização do direito: setores da OAB discordam da transformação de serviços jurídicos em atividade técnica, com risco de rompimento de barreiras profissionais da advocacia
A contragosto da Ordem dos Advogados do Brasil, o Conselho Nacional de Educação (CNE) concordou com a criação do curso de tecnólogo em serviços jurídicos em uma faculdade do Paraná, e decidiu manter o funcionamento de cursos técnicos com esse mesmo nome. A palavra final ainda cabe ao Ministério da Educação, mas o entendimento já preocupa representantes da advocacia consultados pela revista eletrônica Consultor Jurídico. O tecnólogo pode se formar em dois anos e sai com diploma considerado de ensino superior. A Faculdade de Paraíso do Norte (PR) pediu para abrir cem vagas anualmente, porém teve a proposta rejeitada em 2016 pela Secretaria de Regulação e Supervisão da Educação Superior. A instituição de ensino recorreu, e a Câmara de Educação Superior (que integra o CNE) reformou o entendimento — a decisão é de fevereiro, mas só foi publicada no dia 3 de abril.
Atividades diferentes? – Para o conselheiro Joaquim José Soares Neto, relator do caso, preparar tecnólogos em serviços jurídicos não é o mesmo que formar profissionais em direito. Como afirmou a faculdade, a ideia é encaminhar ao mercado de trabalho pessoas aptas a auxiliar advogados, promotores e juízes, por exemplo, sem usurpar nenhuma função. O relator avaliou que a abertura do curso só não teve continuidade porque a Secretaria de Regulação atendeu parecer contrário da OAB. Segundo ele, porém, é desnecessário ouvir a Ordem nesse caso. Além disso, a proposta foi bem avaliada na análise técnica. O entendimento foi seguido por unanimidade pelos colegas. A decisão foi enviada ao setor de consultoria jurídica do MEC, que deve assinar parecer. Enquanto a Faculdade de Paraíso do Norte aguarda o sinal verde, pelo menos três instituições de ensino já oferecem aulas para tecnólogos no país, na modalidade a distância.
Embuste – O presidente do Conselho Federal da OAB, Claudio Lamachia, promete “não poupar esforços para livrar os estudantes brasileiros desse tipo de embuste”. Para ele, “é muito cruel oferecer às pessoas um caminho mais curto para a tão sonhada profissão e, depois, a realidade do curso ficar aquém do esperado”. A argumentação de que a formação é diferente entre tecnólogos e graduados não convence o presidente da Comissão Nacional de Educação Jurídica da OAB, Marisvaldo Cortez Amado: “Basta olhar as disciplinas, que tratam de diversos ramos do direito, como Constitucional, Penal e Empresarial”. Ele avalia que, mesmo se os novos formados atuarem só em atividades de auxílio, ainda sim causarão prejuízo, pois tirarão vagas de estagiários de direito.
Estatuto violado – O presidente do Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (Cesa), Carlos José Santos da Silva, o Cajé, entende que esses cursos violam o Estatuto da Advocacia (Lei 8.906/94), que fixa como atos privativos da advocacia as atividades de consultoria, assessoria e direção jurídicas. “Ora, prestar atendimento ao público sobre questões de direito não pode ser entendido como ‘consultoria e assessoria’?”, questiona. No caso dos cursos técnicos em serviços jurídicos, a Câmara de Educação Básica rejeitou pedido da OAB para excluí-los do Catálogo Nacional de Cursos Técnicos, editado pelo MEC.
Perfil profissional – O relator, conselheiro Rafael Lucchesi Ramacciotti, avaliou que as aulas buscam preparar “um novo perfil profissional”. Ele diz que, conforme a Classificação Brasileira de Ocupações, advogados peticionam em juízo, prestam assessoria jurídica e exercem advocacia empresarial, por exemplo. Já os auxiliares de serviços jurídicos são “coadjuvantes” em audiências; cumprem determinações legais e judiciais; gerenciam atividades técnico-administrativas do cartório e da delegacia e organizam, expedem e registram documentos. Ramacciotti afirmou ainda que esse tipo de campo “apresenta uma demanda que não pode ser ignorada”: entre 2012 e 2015, mais de 13 mil pessoas se matricularam em 13 estados, sendo 4% na rede privada e 96% nas redes públicas, como o Centro Paula Souza, em São Paulo. O parecer também foi unânime.
Aulas em andamento – O Centro Universitário Claretiano (Ceuclar) começou em janeiro as aulas para tecnólogo em serviços jurídicos e notariais, focadas na área de registro e na “sólida formação humanística”, de acordo com a instituição. Serão cinco semestres, com a carga total de 1.900 horas. No Centro Universitário Filadélfia (UniFil), as disciplinas do curso de tecnologia em Serviços Jurídicos incluem Direito Constitucional, Direito Penal, Direito Civil e Direito Tributário. O aluno também se forma em cinco semestres. O Centro Universitário Internacional (Uninter) oferece desde 2014 aulas de Gestão de Serviços Jurídicos e Notariais: a grade curricular inclui legislação trabalhista, mediação e arbitragem, registro de imóveis e competências do oficial de Justiça (1.800 horas). O site anuncia: “O curso prepara você para um excelente desempenho nas carreiras parajurídicas do poder judiciário, cartórios judiciais e extrajudiciais, tabelionatos, escritórios de advocacia, esfera policial, departamentos jurídicos e de recursos humanos de empresas, assessoria parlamentar, ou como profissional autônomo. Bela carreira, com belas possibilidades de ganhos”.