Ilustração: Antonio Junião | Ponte Jornalismo

 

 

Introdução

 

A Lei nº 13.964/2019 (conhecida como pacote “anticrime”) alterou o artigo 311 do Código de Processo Penal, não mais permitindo a decretação da prisão preventiva pelo(a) juiz(a) de ofício (seja na fase policial, seja na judicial). Tal mudança legislativa teria impactado a Lei Maria da Penha, a ponto de se considerar tacitamente revogado o seu artigo 20, que prevê a possibilidade da prisão preventiva de ofício?

Convém lembrar que tal discussão já se faz presente desde 2011, quando a Lei nº 12.403/2011 modificou o mesmo artigo 311 do CPP, para permitir a possibilidade de decretação de prisão preventiva de ofício somente na fase judicial. Observa-se que a limitação atual é mais ampla (não admitindo em hipótese alguma a prisão preventiva de ofício).

Entendemos que o artigo 20 da Lei Maria da Penha permanece disciplinando os casos de prisão preventiva. Nos Tribunais de Justiça, há uma enorme divergência sobre o tema. Entendendo que se aplicam as normas previstas na Lei Maria da Penha, destaca-se o seguinte julgado do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios:

 

Prisão preventiva. Violência doméstica. Injúria, ameaça, lesão corporal e estupro. Integridade da vítima. 1 – No âmbito da Lei nº 11.340/06, em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal caberá a prisão preventiva do agressor, decretada pelo juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público ou mediante representação da autoridade policial. 2 – A prisão cautelar nos crimes de violência doméstica se justifica quando indispensável a assegurar a integridade física da vítima, sobretudo em razão da gravidade concreta de um dos crimes imputados ao paciente — estupro —, punido com pena privativa de liberdade máxima superior a quatro anos (CPP, artigo 313, I). 3 – Eventuais condições pessoais favoráveis ao paciente não são suficientes para impedir a custódia cautelar se presentes os requisitos que a autorizam. 4 – Ordem denegada. (Acórdão nº 1256074, 07115801920208070000; relator: Jair Soares, 2ª Turma Criminal; data de julgamento: 4/6/2020; publicação no DJE: 25/6/2020, sem página cadastrada; grifo da autora).

 

No sentido que estamos aqui defendendo, importa, ainda, trazer à colação decisão do último dia 23 de janeiro, noticiada na o site Conjur[1], do magistrado Ailton Batista de Carvalho, do Tribunal de Justiça da Bahia, que, mesmo reconhecendo vício procedimental formal apontado pela Defensoria Pública, manteve no cárcere um homem acusado de violência doméstica. De acordo com o magistrado[2]:

 

A integridade física da vítima, RSO, está submetida a risco, valendo anotar que, pelo conjunto fático, resta também comprometida a efetividade de uma das medidas cautelares diversas da prisão, previstas no art. 319 do Código de Processo Penal, amoldando-se perfeitamente as disposições contidas no artigo 313, inciso III, do CPP, bem assim no artigo 12-C, § 2º, da Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha).

 

Convém lembrar que, de acordo com o artigo 13 da Lei Maria da Penha, “ao processo, ao julgamento e à execução das causas cíveis e criminais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher aplicar-se-ão as normas dos Códigos de Processo Penal e Processo Civil e da legislação específica relativa à criança, ao adolescente e ao idoso que não conflitarem com o estabelecido nesta Lei” (grifo da autora).

Os argumentos que são utilizados para fundamentar a tese da prevalência do artigo 20 da Lei Maria da Penha em detrimento ao artigo 311 do CPP serão trazidos a seguir:

 

— Protagonismo da atuação do(a) magistrado (a) na Lei Maria da Penha

Em relação ao saudável e imprescindível distanciamento do(a) juiz(a) em relação aos fatos (tomando uma posição equidistante), quando se está na seara das medidas protetivas de urgência, a Lei Maria da Penha exige, embora a prudência, o comprometimento do(a) juiz(a) com a causa da violência doméstica e familiar e uma atuação marcada pela eficiência e pela capacitação plena do(a) magistrado(a) para que compreenda as questões de gênero e possa decidir, não necessariamente a favor da mulher em situação de violência, mas de acordo com tal compreensão. É nisso que se baseia o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) no ano de 2021[3].

Por qual motivo a Lei Maria da Penha concede tal protagonismo? O protagonismo conferido ao(à) magistrado(a) decorre da preocupação central da lei e dos compromissos internacionais dos quais o Brasil é signatário: prevenção da violência contra a mulher, filhos e familiares envolvidos na situação de risco objetivo e iminente, demonstrado empiricamente pelos altos índices de processos criminais que envolvem violência contra a mulher e pelas pesquisas sobre a elevada incidência desse tipo de violência na sociedade e a suas nefastas consequências.

 

— Lei Maria da Penha e o Direito Internacional dos Direitos Humanos

A ementa da Lei Maria da Penha e seu artigo 1º fazem alusão expressa a dois importantes documentos internacionais: Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará – 1994) e Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação sobre a Mulher (Convenção Cedaw – 1979).

E é no artigo 4º do segundo instrumento acima mencionado que podemos encontrar o disciplinamento das medidas especiais de caráter temporário. De tal dispostivo internacional decorre que: 1) medidas especiais de caráter temporário destinadas a acelerar a igualdade de fato entre o homem e a mulher não se considerarão discriminação; 2) de nenhuma maneira a utilização de tais medidas especiais implicará, como consequência, a manutenção de normas desiguais; e 3) essas medidas cessarão quando os objetivos de igualdade de oportunidade e tratamento forem alcançados.

Apesar da grande similitude dos institutos “ações afirmativas” e “medidas especiais de caráter temporário”, a Lei Maria da Penha, tecnicamente, constitui uma representação do segundo deles. A distinção entre um e outro foi aclarada pelo Comitê para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Cedaw). De acordo com o comitê, a expressão ação afirmativa não faz parte da linguagem utilizada nos tratados internacionais de direitos humanos, ficando reservado o seu uso para a doutrina e o Direito interno de alguns países[4].

Na Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 19, o ministro Marco Aurélio — relator — menciona o caráter da Lei Maria da Penha, asseverando que “a discriminação afirmativa que se projeta da Lei Maria da Penha se faz acompanhar de razão que, na exata medida em que se presta a compensar a discriminação de fato cuja existência reconhece, a justifica”[5].

Por serem excepcionais e por preverem sérias restrições de direitos (como é o caso da maioria das medidas protetivas previstas na Lei Maria da Penha), a aplicação dos instrumentos de discriminação positiva só se justificam em situações muito relevantes (princípio da proporcionalidade). Assim, ao mesmo tempo que, de um lado se alargam garantias (em relação à vítima: garantia da vida, da integridade física e psicológica etc.), de outro se limitam direitos (concernentes ao réu: liberdade de ir e vir, presunção da inocência, direito ao contraditório etc.). Por conta disso, torna-se imprescindível a análise acerca da necessidade, adequação e proporcionalidade da medida extrema, que é a prisão preventiva.

 

— A prisão preventiva prevista na Lei Maria da Penha não é de natureza processual penal

A prisão preventiva prevista na Lei Maria da Penha está disciplinada no seu artigo 20, que se encontra, topograficamente, no Capítulo II, Seção I, que trata das disposições gerais das medidas protetivas de urgência. Rege-se, portanto, pela mesma disciplina das demais medidas protetivas contidas na Lei.

Quanto aos objetivos das medidas protetivas de urgência, menciona a Lei Maria da Penha que elas “visam à ‘proteção da ofendida, de seus familiares e de seu patrimônio’ (artigo 19, § 3º), e devem ser aplicadas ‘sempre que os direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaçados ou violados’ (artigo 19, § 2º) e ‘sempre que a segurança da ofendida ou as circunstâncias o exigirem’ (artigo 22, § 1º)”[6].

A prisão preventiva prevista na Lei Maria da Penha possui especificidades que a distinguem daquelas disciplinadas no Código de Processo Penal. Entre elas:

• Pode ser solicitada pela própria vítima (artigo 19 da Lei Maria da Penha).

• Não deve ser deferida com prazo determinado (artigo 5º da Lei nº 13.979/2020, alterado pela Lei nº 14.022/2020).

• Para a decretação da prisão preventiva, não se exige que sejam preenchidos os requisitos formais previstos no artigo 313 do CPP (que o crime seja doloso e punido com pena privativa de liberdade máxima superior a quatro anos — artigo 20 da Lei Maria da Penha).

• A prisão preventiva pode ser decretada em razão do descumprimento de uma medida protetiva de urgência anteriormente estabelecida (CPP, artigo 313, III).

• As medidas protetivas, inclusive a prisão preventiva, “poderão ser concedidas de imediato, independentemente de audiência das partes e de manifestação do Ministério Público” (artigo 19 da Lei Maria da Penha).

O Centro de Inteligência da Justiça do Distrito Federal (CIJDF), na Nota Técnica nº 5[7], concluiu que é cabível prisão preventiva, de ofício, em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal, quando se tratar de violência contra a mulher, no âmbito doméstico ou familiar:

 

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA – DISCIPLINA PROCESSUAL ESPECÍFICA — INAPLICABILIDADE DAS ALTERAÇÕES TRAZIDAS PELA LEI Nº 13.964/2019 — POSSIBILIDADE DE DECRETAÇÃO DE PRISÃO CAUTELAR EX OFFICIO DO AGRESSOR — ESPECIFICIDADE E ESPECIALIDADE DA LEI Nº 11.340/2006 — COMITÊ CEDAW DA ONU, CONVENÇÃO DE BELÉM DO PARÁ E CONSTITUIÇÃO FEDERAL.

 

Compôs a nota técnica, entre outras argumentações, o trecho da exposição de motivos de Lei nº 13.964/2019 (pacote anticrime), o qual, expressamente, menciona: “Excluem-se da proposta os crimes de competência dos Juizados Especiais Criminais, os crimes hediondos ou equiparados, os crimes militares e aqueles que envolvam violência doméstica ou cometidos por funcionário público contra a administração pública”[8] (grifo da autora).

A nota técnica traz, ainda, uma importante contribuição para o tema ao mencionar a decisão do ministro Dias Toffoli, de 15 de janeiro de 2020, na medida cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.298/DF, que suspendeu a aplicabilidade de parte das inovações trazidas pela Lei nº 13.964/2019. Assevera o ministro, quando trata do juiz das garantias[9]:

 

A violência doméstica é um fenômeno dinâmico, caracterizado por uma linha temporal que inicia com a comunicação da agressão. Depois dessa comunicação, sucede-se, no decorrer do tempo, ou a minoração ou o agravamento do quadro. Uma cisão rígida entre as fases de investigação e de instrução/julgamento impediria que o juiz conhecesse toda a dinâmica do contexto de agressão. Portanto, pela sua natureza, os casos de violência doméstica e familiar exigem disciplina processual penal específica, que traduza um procedimento mais dinâmico apto a promover o pronto e efetivo amparo e proteção da vítima de violência doméstica”.

 

A agilidade da medida protetiva de urgência é característica imprescindível para se evitar violência ou a repetição dela, significando dizer que, se a medida for necessária, adequada e proporcional, não há que se exigir do(a) magistrado(a) que se quede inerte, aguardando uma eventual solicitação por parte do Parquet ou da autoridade policial.

A aplicação do Formulário Nacional de Avaliação de Risco – Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher, aprovado pela a Resolução Conjunta CNJ e CNMP nº 5/2020[10], pode concluir pela urgência da medida extrema (prisão preventiva), e, nesse caso, o não agir representará enorme risco de consequência irreparável.

 

 

Considerações finais

 

Não obstante a importante alteração trazida pela Lei nº 13.964/2019, que reforçou o sistema acusatório, ao não mais permitir que o(a) magistrado(a) possa decretar prisão provisória de ofício (mantendo-se, assim, equidistante das partes e garantindo o equilíbrio processual), tal regra precisa ser excepcionada nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, já que a Lei Maria da Penha é ela mesma uma exceção.

Representando uma medida especial de caráter temporário (ou é de ação afirmativa como mencionado majoritariamente pela doutrina e tribunais) e, por assim ser, é da essência da Lei Maria da Penha, na prestigiação de um valor em construção e afirmação social, sacrificar princípios, direitos ou garantias (no caso que estamos analisando, a garantia do sistema acusatório).

Decorrentemente, não obstante toda a preocupação que se deve ter com a manutenção e reforço do sistema acusatório, no momento da ponderação de interesses, há que preponderar a norma de proteção integral à mulher em situação de risco (LMP, artigo 4º).

Para atingirmos tal desiderato, temas como a prisão preventiva de ofício, que, de forma excepcional, deve ser admitida para os crimes praticados no contexto da Lei Maria da Penha, e tantos outros instrumentos presentes na lei, precisam ser corretamente compreendidos e urgentemente implementados. Só assim, até que a triste situação se altere, conseguiremos proteger a mulher em situação de violência doméstica e familiar, contribuindo para diminuir os números dessa pandemia, que representam dor, sofrimento e morte para tantas mulheres e para toda a família (incluindo filhos e filhas), amigos e conhecidos da vítima.

 

Artigo originalmente publicado no site Conjur (7/2/22).

 


NOTAS

 

[1] Disponível em: <t.ly/YyBH>.

[2] Disponível em: <https://www.conjur.com.br/dl/decisao-hc-bahia.pdf>.

[3] Elaborado pelo GT instituído pela Portaria CNJ nº 27, de 02.02.2021. Disponível em: <t.ly/lhND>.

[4] Nações Unidas – Informe do Comitê para a eliminação da Discriminação contra a Mulher – 28º período de sessões (13 a 31 de janeiro de 2003) – 29º período de sessões (30 de junho a 18 de julho de 2003). Disponível em: <http://www.spm.gov.br/assuntos/acoes-internacionais/Articulacao/articulacao-internacional/recomendacoes-cedaw-traduzido-e-revisado-26-12-03.doc>.

[5] STF, ADC 19/DF, relator: ministro Marco Aurélio. Julg. 9/2/2012.

[6] TJ-SP, Apelação 00177961320148260002, rel: des. Alex Zilenovski, j. em 13/6/2016.

[7] Disponível em: <t.ly/5MiC>.

[8] Disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid= node01cid9ta943jzjnltpnctka7o9709566.node0?codteor=1666497&filename= Tramitacao-PL+10372/2018>.

[9] Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/Juizdasgarantias.pdf>.

[10] O objetivo do formulário é ‘identificar os fatores que indiquem o risco da mulher vir a sofrer qualquer forma de violência no âmbito das relações domésticas e familiares (artigo 7º da Lei nº 11.340/2006), para subsidiar a atuação do Ministério Público, do Poder Judiciário e dos demais órgãos da rede de proteção na gestão do risco identificado’ – artigo 2º. Disponível em: <https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3218>.