1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A reforma administrativa, materializada na PEC (Proposta de Emenda Constitucional) nº 32/2020, anuncia, em seu texto e na exposição de motivos que a fundamenta, uma série de medidas que pretendem, segundo os seus idealizadores, conferir “maior eficiência, eficácia e efetividade à atuação do Estado”.[1] Essa retórica de aparência modernizadora se repete em vários trechos da versão originalmente apresentada ao Congresso Nacional.
O ofício que acompanha a nova redação dos dispositivos constitucionais afetados, subscrito em 2 de setembro de 2020 pelo Ministério da Economia, é pródigo em generalidades, e revela o ponto de partida da PEC nº 32/2020: “a percepção do cidadão, corroborada por indicadores diversos, […] de que o Estado custa muito, mas entrega pouco”[2]. Para o leitor curioso, seria legítimo imaginar que essa proposição fosse explicada na sequência, com o detalhamento, por exemplo, de quais são os “indicadores diversos” que levaram à conclusão posta na frase. A expectativa, todavia, será frustrada.
A mensagem governamental não contém dados comprobatórios da ineficácia das ações do Estado em áreas de atendimento essenciais para a população. E não parece incomodada com isso. Interessa-lhe, principalmente, destacar o imperativo de “[…] pensar em um novo modelo de serviço público, capaz de enfrentar os desafios do futuro e entregar serviços de qualidade para a população brasileira”[3]. Permaneceria, então, o “escopo maior de transformação […] que pretende trazer mais agilidade e eficiência aos serviços oferecidos pelo governo, sendo o primeiro passo em uma alteração maior do arcabouço legal brasileiro”[4]. A proposta gira em torno de um objetivo preponderante: baratear a administração, com o enfraquecimento dos serviços públicos e a desconstitucionalização de direitos assegurados aos trabalhadores do setor. Quanto à qualidade da “entrega”, os novos preceitos não garantem as melhorias que prometem, como se verá mais adiante.
Para a análise da PEC nº 32/2020, é necessário contextualizar as várias reformas surgidas em tempos recentes. Elas foram esboçadas na década de 1990, avançaram parcialmente nos anos seguintes, com alguns percalços e resistências, e ganharam velocidade depois de 2016, quando a crise política que atingiu o segundo mandato de Dilma Rousseff culminou com o impeachment votado pelo parlamento. Com Michel Temer na Presidência, foi dado impulso a um programa de expansão neoliberal. Um programa feito, na sua largada, para ser coordenado por Fernando Collor de Mello, vencedor da eleição de 1989 numa disputa de segundo turno com Luís Inácio Lula da Silva.
Collor, porém, não conseguiu terminar o seu mandato como chefe do Executivo, o que provocou a reacomodação das forças que o sustentavam. A intenção foi, desde sempre, retirar da Constituição de 1988 a proteção social, ainda limitada, que sobreviveu às investidas de grupos conservadores reunidos no Centrão (em sua versão primitiva). Para essa frente ideológica, direitos trabalhistas, garantias vinculadas ao processo penal, universalização do sistema de saúde, previdência e assistência e respeito à integridade de minorias e de povos indígenas nunca foram ideias aceitáveis. Mas elas estavam lá, no texto debatido e aprovado por um Congresso constituinte, e precisavam ser desfeitas.
Não seria exagero, portanto, situar a PEC nº 32/2020 entre as medidas fomentadoras do Estado “enxuto” preconizado pela cartilha neoliberal. Outros passos em direção a esse arranjo já haviam sido dados, em especial no período pós-2016: i) a Emenda Constitucional nº 95/2016, que instituiu um “novo regime fiscal”, com teto de gastos públicos, a vigorar durante vinte anos a partir da sua aprovação; ii) a Lei nº 13.429, de 31 de março de 2017, que dispôs sobre o trabalho temporário em empresas urbanas (lei das terceirizações); iii) a Lei nº 13.467, de 13 de julho de 2017, que modificou a Consolidação das Leis do Trabalho (reforma trabalhista); iv) a reforma da previdência (Emenda Constitucional nº 103/2019); e v) a Lei nº 13.874, de 20 de setembro de 2019, que instituiu a chamada “declaração de direitos de liberdade econômica”, um aprofundamento da reforma trabalhista.
Encarar a reforma administrativa com base apenas na leitura do texto isolado da PEC nº 32/2020 não é o propósito deste trabalho. O que ele pretende, diferentemente disso, é identificar como as alterações legislativas de agora vêm consolidando um projeto diretamente vinculado às metamorfoses do capitalismo mundial ocorridas nas últimas décadas. Para essa finalidade, serão utilizados, com bastante frequência, conceitos e informações reunidos no livro O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital, de Ricardo Antunes, um apanhado teórico que mostra, em várias das suas passagens, como essas transformações geraram “um modo de trabalho e de vida pautados na flexibilização e na precarização do trabalho” (ANTUNES, 2018, p. 153).
Nesse sentido, o que faz a proposta em discussão no Congresso Nacional é transportar a tendência de supressão de direitos trabalhistas para o âmbito da administração pública. O conteúdo da reforma, então, pode ser resumido em dois aspectos centrais: o esvaziamento de garantias atribuídas ao funcionalismo e a criação de mecanismos facilitadores da transferência de atividades estatais para o setor privado.
Para o serviço público, as consequências tendem a ser altamente regressivas. Assim como a reforma trabalhista destruiu as bases de proteção do Direito do Trabalho, em nome de uma modernidade que promove a superexploração da mão de obra, a reforma administrativa caminha no sentido de devolver à administração pública o caráter patrimonialista do período anterior a 1930. Evidentemente, essa intenção não aparece no texto submetido ao Congresso Nacional, que vem repleto de conceitos de pretensão inovadora. O plano traçado, no entanto, remete a um tempo distante, de desassistência completa à maioria da população brasileira, que se pensava definitivamente sepultado pela Constituição de 1988.
Nos capítulos seguintes, alguns dos institutos mais importantes que regem a administração pública – o regime jurídico único, a prevalência do concurso público como forma de admissão de quadros e a estabilidade –, além dos seus princípios norteadores, serão confrontados com o modelo de flexibilização e colaboração com a iniciativa privada que a reforma quer adotar.
2. A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NO BRASIL
No Brasil, a administração pública surgiu sob inspiração de um modelo patrimonialista cujo traço principal consistiu na apropriação da estrutura de prestação de serviços estatais por grupos privados. Num primeiro estágio, a distribuição de cargos públicos, prerrogativa dos detentores do poder, se realizava em troca de uma espécie de fidelidade ideológica exigida dos beneficiários dos favores oficiais. Faltava regulamentação legal da matéria, circunstância que contribuiu para aumentar a influência e o controle exercidos, em épocas distintas, pela elite política e econômica que mandava no País.
Essa situação atravessou a monarquia e se manteve imediatamente após instaurada a República brasileira, em 1889. Somente após 1930 é que se abriu uma nova fase, com o advento da burocracia no serviço público. O termo, aqui, tem o significado de organização administrativa estatal, distribuída por critérios de racionalidade e integrada por agentes públicos. Ou de aparato técnico-administrativo, formado por profissionais especializados, com divisão de tarefas no interior do sistema. Esse conjunto de definições foi concebido pelo alemão Max Weber (1864-1920), um polímata famoso que atuou em disciplinas como filosofia, direito, economia e sociologia clássica (BURKE, 2020, p. 231), com base em elementos jurídicos do século XIX.
Marco importante do período burocrático foi a Lei nº 284, de 28 de outubro de 1936, que definiu as carreiras dos funcionários civis da União. Entre as normas contidas naquele diploma, o artigo 41 determinava: “a primeira investidura nos cargos técnicos-administrativos dependerá de habilitação prévia em concurso de provas ou de provas e títulos […]”. Em seguida, o Decreto-lei nº 579, de 30 de julho de 1938, organizou o Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP). O objetivo foi disciplinar o funcionamento de unidades vinculadas ao Poder Executivo, com abrangência de aspectos orçamentários e administrativos.
A rigidez burocrática, no entanto, não demorou a enfrentar resistência. Em nome da preservação de direitos da cidadania, buscou-se flexibilizar as regras de organização do serviço público, que passaram a ser interpretadas sob uma perspectiva “gerencial”. Supostamente vencida a fase patrimonialista, a questão seria ultrapassar os limites exigidos pela racionalidade “dura” do sistema, de modo a se abrir um campo discricionário mais amplo aos responsáveis pela administração. Essa inclinação prevaleceu entre a década de 1940 e a entrada em vigor da Constituição de 1988. Durante o regime militar (1964-1985), a Lei nº 6.185, de 11 de dezembro de 1974, generalizou a contratação de servidores pelas normas da CLT, diminuindo o alcance do regime de direito público, estatutário[5], no qual o concurso de provas ou de provas e títulos se põe como o principal requisito de ingresso nos quadros de carreira.
Com a Constituição de 8 de outubro de 1988, o serviço público foi objeto de um tratamento mais profissionalizado, com subordinação à regra do artigo 37: “a administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade [e] publicidade […][6]. A partir daí, reforçaram-se algumas garantias dadas ao funcionalismo público, como o regime jurídico único (artigo 39), a isonomia de vencimentos para cargos de atribuições iguais ou semelhantes (artigo 39, § 1º), a paridade de revisão salarial entre aposentados e servidores da ativa (artigo 39, § 4º) e a estabilidade (artigo 41).
Esses benefícios, de alcance individualizado, têm o sentido, também, de afastar a burocracia estatal de ingerências políticas e propiciar a efetividade dos princípios que se aplicam à administração pública. De forma indireta, eles estariam ao lado do interesse geral de permanência e continuidade de atendimento coletivo em áreas essenciais.
Diante da expansão do neoliberalismo, incrementada logo após a vigência da Carta de 1988, as pressões por mudanças foram grandes. A eleição de Fernando Collor, em 1989, sinalizou o triunfo da tese da ineficiência do Estado, do gigantismo da administração pública e da necessidade de transferência de atividades estatais para o setor privado. Nesse ambiente, a primeira versão do Capítulo VII (Da administração pública) do Título III (Da organização do Estado) não teria como se sustentar por muito tempo.
2.1. O regime jurídico único ameaçado
Com a Emenda Constitucional nº 19, de 4 de junho de 1998, o caput do artigo 37 da Constituição ganhou um acréscimo. Ao lado dos princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade e da publicidade, a administração pública passou a se subordinar, também, ao da “eficiência”. A alteração foi mais do que um detalhe, e incorporou ao ordenamento jurídico a convicção de que o Estado não funciona. E, uma vez que o Estado não funciona, a consequência lógica seria a absorção dos serviços que lhe são inerentes pela iniciativa privada, onde, em tese, se encontraria a qualificação perseguida.
Essa premissa contaminou o prestígio dos servidores públicos, que já havia sido alvo de ataques desferidos em campanhas midiáticas de grande porte, como a que elegeu Fernando Collor, apresentado à população como “caçador de marajás” – os marajás, no caso, seriam os trabalhadores do setor público, acusados de deter privilégios e altos salários. As normas aprovadas pelos constituintes, na parte que dá estrutura e proteção à atividade estatal, seriam, portanto, benevolentes demais, conservadoras e incompatíveis com a realidade de um país em incessante crise econômica, o que demandaria a sua reforma.
Uma das prioridades da vaga modernizante dos primeiros anos da década de 1990 foi a destruição do regime jurídico único, que viera para pôr “um ‘basta’ na possibilidade que existia, na vigência das Constituições anteriores [à de 1988], de a administração pública admitir seus servidores segundo o estatuto ou nos termos da CLT” (GASPARINI, 1995, p. 138). Outorgada a Emenda Constitucional nº 19/1998[7], surgiram “diversos regimes jurídicos, sendo costumeiro diferenciar o regime dito estatutário daquele não estatutário”, conforme Justen Filho (2008, p. 693). O regime estatutário, de direito público, tem como elemento identificador a prevalência da administração pública, “desigualando-a nos relacionamentos que labora com outrem, sejam essas relações uni ou plurilaterais” (GASPARINI, 1995, p. 137). Já o regime não estatutário é de natureza contratual, e “compreende também o emprego público, […] que não envolve um vínculo jurídico de direito público, mas se subordina ao Direito do Trabalho” (JUSTEN FILHO, 2008, p. 693).
Se as mudanças impostas ao texto primitivo da Constituição eliminaram a unidade do sistema jurídico a que o funcionalismo se subordina, a perspectiva, com a PEC nº 32/2020, é de radicalização dessa tendência. O artigo 39-A da proposta se refere não mais a regime jurídico único, mas a “regime jurídico de pessoal”, que compreende cinco modalidades: i) vínculo de experiência, como etapa de concurso público; ii) vínculo por prazo determinado; iii) cargo com vínculo por prazo determinado; iv) cargo típico de Estado; e v) cargo de liderança e assessoramento.
Nessa amplitude de vinculações jurídicas, “mais bem alinhadas às necessidades atuais e futuras da administração”[8], está presente a tentativa de legitimar, no âmbito do serviço público, a precariedade do emprego, fenômeno que já contaminou as relações de produção, de caráter privado. Trata-se, segundo Antunes (2018, p. 153), “de uma hegemonia da ‘lógica financeira’ que, para além de sua dimensão econômica, atinge todos os âmbitos da vida social, dando um novo conteúdo aos modos de trabalho e de vida, sustentados na volatilidade, na efemeridade e na descartabilidade sem limites”. Nesse sentido, a centralização absoluta do capital produz duas consequências: i) contribui para manter (ou reduzir) os salários sempre abaixo do valor necessário para atender as demandas da classe trabalhadora; e ii) faz surgir uma massa de sujeitos disposta a se inserir imediatamente nos processos produtivos (TRINDADE, 2017, p. 227).
Na administração pública, o desfazimento do regime jurídico único cumpre esse papel de “flexibilização”, abre portas para a terceirização de atividades estatais típicas e atinge, enfraquecendo-a ou a inviabilizando definitivamente, uma das mais importantes conquistas da organização do funcionalismo: os planos de carreira, leis setorizadas que definem direitos e obrigações de agentes públicos. Outras garantias foram relativizadas pelas reformas que já entraram em vigor ou por legislações infraconstitucionais – a isonomia, a paridade e, em especial, a estabilidade –, e estão condenadas a desaparecer caso a PEC nº 32/2020 se transforme em emenda constitucional.
2.2. Estabilidade para poucos
Garantir a estabilidade no emprego não é um tema que diga respeito apenas aos trabalhadores do serviço público. Essa preocupação vem desde o início do século XX, e reflete dois aspectos importantes: a proteção aos assalariados e a intervenção do Estado na ordem econômica e social, mediante a incidência de leis trabalhistas (ALMEIDA, 1977, p. 412).
No campo da produção, buscava-se incluir nos contratos de trabalho, entre várias outras cláusulas obrigacionais, dispositivos de contenção de despedidas imotivadas. A esse respeito, Almeida (1977, p. 413) observa que a estabilidade era entendida como “propriedade do emprego”, expressão utilizada com bastante frequência por estudiosos do Direito do Trabalho em países da Europa. Isso quer dizer que, ao ser admitido numa empresa, o empregado somente poderia ter rompido o seu vínculo contratual nas hipóteses de afastamento voluntário, aposentadoria ou cometimento de falta grave.
Essa concepção garantidora foi atropelada por uma realidade social e econômica cada vez mais complexa, que fortaleceu, principalmente após a Segunda Guerra Mundial, a tese do pleno emprego como requisito para que a estabilidade se tornasse efetiva. A partir daí, o conceito se modificou. A estabilidade deixou de ser encarada como proteção individual e se tornou um instituto dinâmico, ao qual se deu o sentido coletivo de “busca do trabalho”.
No Brasil, a CLT, de 1943, estabeleceu a proteção contra demissões sem justa causa como regra geral. Tratava-se, como ressaltado por Almeida (1977, p. 415), de “proteger as massas assalariadas emergentes, embora essas tivessem sido atreladas a seu controle pela falta de liberdade sindical, desde 1931”. Esse sistema permaneceu até a entrada em vigor da Lei nº 5.107, de 13 de setembro de 1966, que criou o Fundo de Garantida do Tempo de Serviço (FGTS).
A inovação não atingiu diretamente a estabilidade, mas criou situações de fato que a tornaram um instituto morto, sem existência real no mundo do trabalho. Isso tudo recrudesceu com a hegemonia neoliberal dos anos 1990, responsável por um salto no “processo de reestruturação produtiva do capital, levando as empresas a adotar novos padrões organizacionais e tecnológicos, novas formas de organização social do trabalho, novos métodos denominados ‘participativos’ […]” (ANTUNES, 2018, p. 118). Nesse modelo de precarização e informalidade crescentes, o direito à estabilidade na iniciativa privada simplesmente deixou de existir.
Ainda assim, a Constituição de 1988, posterior ao regime militar, manteve a estabilidade como garantia do servidor público (e não como atributo do cargo ocupado por ele). Adotando-se o conceito formulado por Gasparini (1995, p. 151), a estabilidade se coloca como “garantia constitucional de permanência no serviço público do servidor público nomeado, em razão de concurso público, para titularizar cargo de provimento efetivo, após o transcurso do estágio probatório”. Inicialmente estabelecido em dois anos, o estágio probatório foi ampliado, pela Emenda Constitucional nº 19/1998, para três anos. Agora, na tentativa de extinguir esse modelo, a PEC nº 32/2021 faz uma inversão: a estabilidade, antes conferida a todos os ocupantes de cargos de provimento efetivo, deixa de ser a regra, e vale apenas para os titulares de “cargos típicos de Estado” – corporações militares e cúpulas do Judiciário e do Ministério Público, além de setores do Executivo e do Legislativo[9].
Mesmo que se considere a estabilidade como garantia do servidor, retirando-lhe qualquer atributo coletivo, é inegável que essa garantia ultrapassa o limite da tutela de interesses individuais. A condição de estável dá ao trabalhador público a necessária autonomia para o desempenho de funções técnicas, de modo a afastá-lo de ingerências políticas ou de pressões que poderiam transformá-lo em mero serviçal de governos de ocasião. Ela tem que ser a regra, porque é indispensável para a efetividade dos princípios colocados no artigo 37 da Constituição.
Nada assegura, consequentemente, que a mudança preconizada pela PEC nº 32/2020 – atribuição de estabilidade apenas a detentores de cargos “típicos de Estado” – cumpra o objetivo de promover a “eficiência da gestão pública”[10], estampado de forma solene em sua justificativa.
2.3. A precarização como regra geral
Em seu estudo sobre a flexibilização das relações de trabalho, Antunes (2018, p. 120) toma a combinação entre neoliberalismo, financeirização da economia e reestruturação produtiva para compreender como esse fenômeno alterou a morfologia da classe trabalhadora. “A flexibilização produtiva, as desregulamentações, as novas formas de gestão do capital, o aumento das terceirizações e da informalidade acabaram por desenhar uma nova fase do capitalismo no Brasil”, afirma.
Nessa nova fase, “a flexibilização constitui […] uma espécie de síntese ordenadora dos múltiplos fatores que fundamentam as alterações na sociabilidade do capitalismo contemporâneo” (ANTUNES, 2018, p. 141), cujo impacto nas relações de trabalho se expressa: i) no estreitamento das fronteiras entre a atividade laboral e o espaço da vida privada; ii) na destruição das leis trabalhistas; iii) na diversificação das formas de contratação da força de trabalho; e iv) no desemprego estrutural.
As várias mudanças legislativas que aconteceram a partir de 2016 fizeram com que a ordem jurídica assimilasse o processo de superexploração do trabalho, chamando-o para a legalidade. Foi assim com a reforma trabalhista, que implodiu as bases de proteção do Direito do Trabalho e fez prevalecer o “negociado” sobre o legislado, com prejuízos gravíssimos aos assalariados. O retrocesso aumentou pouco tempo depois, com a Lei nº 13.874/2019, que, baseada num conceito absolutamente estranho de “hipossuficiência” do empresariado, entregou a esse setor uma vasta relação de benefícios, contrários aos preceitos da antiga CLT, que já vinha em fase de desmanche. Formava-se, no campo normativo, um sistema de relações de emprego precárias, terceirizações expandidas e maior disponibilidade da força de trabalho em favor dos donos do capital.
Como inserir essas inovações na administração pública, então? Algumas delas haviam sido incorporadas anteriormente, como a terceirização, que se espalhou por atividades cada vez mais diversificadas da máquina estatal[11]. Para Druck (2017, p. 185), “é no marco da reestruturação produtiva, do fenômeno da globalização econômica e financeira e da implementação de políticas neoliberais no Brasil, a partir do início dos anos 1990, que a terceirização torna-se um novo fenômeno no âmbito da ‘acumulação flexível’”. Esse processo é abrangente, e faz com que a terceirização ganhe centralidade em praticamente todas as atividades, “deixando de ser periférica para se tornar uma prática-chave para todo tipo de empresa, na indústria, nos serviços públicos e privados, no comércio, enfim em todo tipo de trabalho (DRUCK, 2017, p. 185).
Houve, também, reiteradas iniciativas governamentais, desde o período Collor, citado antes, que buscaram eliminar direitos conferidos ao funcionalismo da “base” da administração e concentrar recursos orçamentários na conservação de prerrogativas das chamadas “carreiras típicas de Estado”.
Mas foi com a Emenda Constitucional nº 95/2016 que esse programa fincou bases concretas. A proposta estabeleceu um teto de gastos públicos federais, com a fixação de um novo regime fiscal, previsto para valer até 2036. Na prática, consolidou-se um corte brutal de recursos para atividades sociais e para investimentos em estruturas públicas de prestação de serviços. Pretendeu-se, como observado por Mariano (2017, p. 277), “constituir uma opção equivocada por alcançar superávit primário por meio do limite de gastos, aprofundando a crise econômica para satisfazer setores ligados ao capitalismo rentista […]”. Em outras palavras, a alteração constitucional criou “um obstáculo neocolonialista ao desenvolvimento soberano de economias periféricas […], com o objetivo de domesticá-las na tradicional relação econômica de dependência com as economias do capitalismo central” (MARIANO, 2017, p. 277).
Estabelecido o regime fiscal de restrições à função pública, veio ao mundo a reforma da previdência[12], medida que retomou a propagação da tese do “Estado mínimo”. O aprofundamento desse objetivo privatista aparece, agora, em vários trechos da PEC nº 32/2020. Mais intensamente do que havia sido feito em reformas anteriores, o projeto que tramita no Congresso Nacional lança novas bases jurídicas para o “enxugamento da máquina”. Definições de baixa precisão técnica, como “inovação, responsabilidade, unidade, coordenação, boa governança pública e subsidiariedade”, foram acrescidas ao artigo 37. Elas aparecem sob a forma de princípios autorizadores de uma cooperação cada vez maior entre Estado e entidades públicas e privadas, com possibilidade de “compartilhamento de estrutura física e […] utilização de recursos humanos particulares, com ou sem contrapartida financeira”. Está lá, na redação do artigo 37-A sugerida pela PEC.
No mais, o documento elaborado pelo Ministério da Economia é uma profusão de cortes de direitos de servidores públicos[13] e promessas que não se realizarão nunca. Isso porque as intenções declaradas pelos autores da proposta, de melhoria de serviços e racionalização dos quadros de pessoal, são contraditórias com o enfraquecimento da estrutura pública que a reforma impõe. O que se vislumbra, de fato, é a eliminação de recursos destinados às necessidades da parcela da população que depende da assistência do Estado para sobreviver.
Está em perspectiva, no programa que inspira as mudanças submetidas ao parlamento brasileiro, um cenário de debilidade jurídica das relações de trabalho. Essa política afeta a administração pública, revoga garantias estatutárias e coloca o funcionalismo num estágio de total de insegurança. Está em perspectiva, também, uma batalha comum a todos os trabalhadores brasileiros, que consiste em romper a lógica da prevalência absoluta dos interesses do capital sobre questões de natureza coletiva, marco das economias regidas pelo neoliberalismo. “Se isso não for feito”, adverte Antunes (2018, p. 34), “os novos proletários dos serviços se encontrarão entre uma realidade triste e outra trágica: oscilarão entre o desemprego completo e, na melhor das hipóteses, a disponibilidade para tentar obter o ‘privilégio da servidão’”.
Como se vê, esse dilema se aproxima cada vez mais do cotidiano dos órgãos públicos de prestação de serviços e seus agentes.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
As considerações feitas neste estudo tomaram por base o texto original da PEC nº 32/2020. Não se atentou para os detalhes do trâmite do projeto, que está sujeito, como não poderia deixar de ser, a alterações e discussão de substitutivos – incidentes típicos do processo legislativo. Há motivos para isso. Caso se transforme em emenda constitucional, independentemente de como venha a se apresentar a sua redação definitiva, a proposta do governo tem um contorno ideológico fácil de ser identificado. O objetivo perseguido é o “enxugamento” da estrutura pública de prestação de serviços, mantra do neoliberalismo que recrudesceu no Brasil após 2016, movido pela crise política que culminou com o afastamento da então presidente da República, Dilma Rousseff.
A PEC nº 32/2020 forma um conjunto normativo de pouco rigor técnico. Ao afirmar a “inovação” como princípio, em “plena consonância com uma concepção modernizadora das relações entre o poder público e a sociedade”, ou como “símbolo de uma nova era do Estado brasileiro”[14], a sua justificativa estabelece uma interpretação simplista – e falsa – da realidade. Tudo funcionaria como se existisse um grande movimento “popular” destinado a combater a “mera conservação burocrática, que, desconectada dos tempos atuais, tem se revelado ineficiente para atender aos anseios do povo brasileiro”[15].
O suposto movimento, porém, se reduz a proclamações grandiloquentes e vazias de conteúdo, que desconsideram a complexidade da máquina administrativa e ignoram os critérios de distribuição dos postos de atendimento nas esferas municipal, estadual e federal. Esses dados estão disponíveis em arquivos como o Atlas do Estado Brasileiro 2019, divulgado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), uma plataforma interativa que reúne informações sobre a organização do serviço público e as remunerações pagas no âmbito dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário[16].
Também do Ipea, o estudo Três décadas de evolução do funcionalismo público no Brasil revela que, entre 1985 e 2017, o número total de vínculos de emprego no setor público aumentou em 123%, um crescimento compatível com o verificado no mercado formal de trabalho do setor privado, que ficou em 95%[17]. Essa e muitas outras estatísticas, deixadas de lado na formatação da PEC nº 32/2020, se contrapõem à tese do “inchaço”, da ineficiência e do alto custo do Estado, incorporada pelo governo[18].
Um retrocesso enorme se avizinha. Com desconstitucionalização sugerida pela equipe do Ministério da Economia, os quadros de pessoal da administração pública ficarão sujeitos a um regime de trabalho precarizado, com direitos reduzidos e sob o risco cada vez maior de sofrer pressões políticas em seu domínio profissional. O desaparecimento da estabilidade – exceto para os “cargos típicos de Estado”, ocupados por uma elite de funcionários que permanecerá à margem da reforma –, aliado ao fim do regime jurídico único, dos planos de carreira e de outras garantias ao desempenho de funções públicas, em nada contribuirá para “a transformação [de] que o Estado indubitavelmente necessita”[19].
Pelo contrário. As intenções da reforma se colocam num patamar de desmanche, e não de transformação. Como se viu em capítulo anterior, esse programa consolida a hegemonia do capital sobre o trabalho, com o aprofundamento, na esfera pública, das terceirizações e da flexibilização dos vínculos de emprego previsto na reforma trabalhista. Completa-se, com tais propostas de mudanças, a reconfiguração do Estado ensaiada pela PEC nº 95/2016 (congelamento de gastos públicos) e pela Emenda Constitucional nº 103/2019 (reforma da previdência), tudo “de acordo com projeções do Banco Mundial, realizadas a partir de dados fornecidos pelo Ministério da Economia”[20].
Definida a meta – a privatização sem limites, num ambiente de concentração da riqueza nacional e de massacre das condições de vida da maioria da população –, fica escancarado o verdadeiro e único papel da reforma administrativa: servir de instrumento para a expansão do neoliberalismo num país repleto de desigualdades sociais.
NOTAS
[1] Cf. exposição de motivos da PEC nº 32/2020. Texto completo e ofício de encaminhamento ao Congresso Nacional disponíveis em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=node0hzv9bgaeuisz9ofmkxp72ws1175895.node0?codteor=1928147&filename=PEC+32/2020>. Acesso em: 15/8/2021.
[2] Cf. exposição de motivos da PEC nº 32/2020 (cit.).
[3] Cf. exposição de motivos da PEC nº 32/2020 (cit.).
[4] Cf. exposição de motivos da PEC nº 32/2020 (cit.).
[5] De acordo com Justen Filho (2018, p. 693), “o regime jurídico estatutário se caracteriza pela titularidade de um cargo público e pela não-incidência das regras fundamentais do Direito do Trabalho, incidindo regime jurídico que pode ser alterado, na forma da lei, a qualquer tempo”.
[6] A reprodução, aqui, é do texto original da Constituição aprovada no dia 8 de outubro de 1988. Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/legin/fed/consti/1988/constituicao-1988-5-outubro-1988-322142-publicacaooriginal-1-pl.html>. Acesso em: 12/8/2021.
[7] Com a Emenda Constitucional nº 19/1998, a redação do artigo 39, caput, foi modificada, ficando assim: “A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituirão conselho de política de administração e remuneração de pessoal, integrado por servidores designados pelos respectivos Poderes”. A respeito desse assunto, Justen Filho (2008, p. 693), pondera: “A Constituição de 1988 chegou a impor um regime jurídico único para todos […] [os] servidores, mas a solução foi retirada da Carta posteriormente (muito embora […] o STF tenha suspendido a eficácia da alteração que eliminou o regime único). Durante a vigência da Emenda Constitucional nº 19 (que se prolongou até 2/8/2007), surgiram diversos regimes jurídicos […]”.
[8] Cf. exposição de motivos da PEC nº 32/2020 (cit.).
[9] De acordo com a PEC nº 32/2020, “os critérios para definição dos cargos típicos de Estado serão estabelecidos em lei complementar federal” (redação proposta para o § 1º do artigo 39-A da Constituição Federal).
[10] Cf. exposição de motivos da PEC nº 32/2020 (cit.).
[11] “Em contraposição ao discurso empresarial que justifica a terceirização como parte da ‘modernização’ das empresas na era da globalização, visando a maior ‘especialização’ das atividades produtivas, as pesquisas atestam que as empresas também terceirizam para transferir os riscos para os trabalhadores, desobrigando-se de cumprir e seguir as exigências da legislação e dos direitos trabalhistas, que se tornam de responsabilidade das terceirizadas” (ANTUNES, 2018. p. 150). Em outras palavras: ao diluir a responsabilidade patronal, a terceirização reduziu salários, eliminou direitos trabalhistas e fez aumentar expressivamente o número de acidentes do trabalho.
[12] A reforma da previdência faz parte de um conjunto de medidas de desconstitucionalização de direitos sociais, e é um marco na expansão do neoliberalismo no país. Os seus dispositivos retiraram garantias adquiridas por contribuintes de regimes especiais e criaram regras que enfraquecem o sistema. Juntamente com as mudanças realizadas na legislação trabalhista e no sistema fiscal, com o corte de investimentos em atividades sociais, a “nova” previdência tende a estender o regime geral a todo o funcionalismo, preparando terreno para a supressão, no âmbito administrativo, do regime jurídico de direito público.
[13] Se a PEC nº 32/2020 for aprovada, a tendência é que ocorram, imediatamente ou a médio prazo, cortes de direitos atualmente atribuídos aos servidores públicos, em decorrência do teor sugerido para – entre outros – os seguintes dispositivos da Constituição: artigo 37, II-A, XVI-B, XXIII e incisos, § 16 e § 18; artigo 37-A; artigo 39; artigo 39-A; artigo 40-A; e artigo 41.
[14] Cf. exposição de motivos da PEC nº 32/2020 (cit.).
[15] Cf. exposição de motivos da PEC nº 32/2020 (cit.).
[16] Cf. Atlas do Estado Brasileiro – 2019 apresenta a evolução do setor público em 32 anos, Disponível em: <https://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=35222>. Acesso em: 20/8/2021.
[17] A respeito do assunto, Mariano (2017, p. 273) observa: “Em número de servidores públicos, […] o Brasil segue a média da América Latina, que é inferior à média de países desenvolvidos. A cada cem trabalhadores brasileiros, 12 são servidores públicos, enquanto nos países mais desenvolvidos, o percentual costuma ser no mínimo o dobro, sendo a média de 21 servidores para cada cem trabalhadores. Em nações como Noruega e Dinamarca, mais de 1/3 da população economicamente ativa está empregada no serviço público […]”.
[18] Cf. referência anterior [16].
[19] Cf. exposição de motivos da PEC nº 32/2020 (cit.).
[20] No Brasil, a interferência do Banco Mundial em mudanças legislativas não chega a ser novidade. No início dos anos 2000, a Coordenação Nacional dos Trabalhadores da Justiça, um movimento autônomo de sindicatos e organizações de base, denunciava que a reforma do Poder Judiciário, transformada na Emenda Constitucional nº 45/2004, era uma exigência contida no Documento Técnico nº 319, do organismo internacional (O setor judiciário na América Latina e no Caribe: elementos para a reforma). O objetivo consistia em oferecer segurança jurídica, materializada na efetividade de contratos e convênios, a investidores externos.
REFERÊNCIAS
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ANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018.
BURKE, Peter. O polímata: uma história cultural de Leonardo da Vinci a Susan Sontag. São Paulo: Editora Unesp, 2020.
DRUCK, Graça. A terceirização sem limites: mais precarização e riscos de morte aos trabalhadores. In: FILGUEIRAS, Vitor Araújo (Org.). Saúde e segurança do trabalho no Brasil. Brasília: Gráfica Movimento, 2017. p. 183-204.
GASPARINI, Diogenes. Direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 1995.
IPEA. Atlas do Estado Brasileiro 2019 apresenta a evolução do setor público em 32 anos.6 dez. 2019. Disponível em: <https://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=35222> Acesso em: 20/8/2021.
JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 2008.
MARIANO, Cynara Monteiro. Emenda Constitucional 95/2016 e o teto dos gastos públicos: Brasil de volta ao estado de exceção econômico e ao capitalismo do desastre. Curitiba: Revista de investigações constitucionais, v. 4, n. 1, p. 259-281, jan./abr.2017. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/rinc/a/wJb3fZFMmZh65KfmrcWkDrp/?format=pdf&lang=pt>. Acesso em: 20/8/2021.
TRINDADE, Hiago. Crise do capital, exército industrial de reserva e precariado no Brasil contemporâneo. São Paulo: Serv. Soc. Soc., n. 129, p. 225-244, mai./ago.2017. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/sssoc/a/3TSwtXZPh6frCZF7QBNTLbP/?lang=pt&format=pdf>. Acesso em: 20/8/2021.