Um fantasma volta a rondar a política brasileira: o voto único não transferível, popularmente conhecido por “distritão”. Em 2015, patrocinado por Eduardo Cunha, quase foi aprovado no plenário da Câmara dos Deputados. Em 2017, chegou a obter apoio majoritário na comissão especial da reforma política. Na nova comissão, instituída por Arthur Lira e hoje em funcionamento, há “forte adesão” à ideia, segundo a relatora, deputada Renata Abreu (Podemos-SP).
O sistema eleitoral é sempre o tema mais candente da nunca resolvida reforma política no Brasil. É possível questionar esta proeminência. O sistema eleitoral é o mecanismo pelo qual os votos dos eleitores são transformados em acesso a posições de autoridade (cadeiras parlamentares ou cargos executivos). Por mais importante que seja, tem capacidade muito menor de impactar o exercício do poder do que outros fatores, como a desigualdade econômica, o controle da informação e a divisão do trabalho doméstico. Mas tais temas raramente são lembrados quando se fala de reforma política.
No Brasil, as casas legislativas, com exceção do Senado, são preenchidas por representação proporcional (RP) com listas abertas. Cada unidade da federação é um distrito com determinado número de cadeiras (hoje, de 8 a 70), e as vagas são distribuídas proporcionalmente à votação de cada lista partidária. Mas a lista é aberta, isto é, não há hierarquização prévia pelos partidos. Portanto, o eleitor escolhe um candidato e nele deposita seu voto; recebem as cadeiras destinadas à lista aqueles que, dentro dela, obtiveram maior número de votos populares.
A RP foi instituída após a Revolução de 1930, como maneira de reduzir o poderio dos coronéis – já que na República Velha imperava a votação uninominal em turno único em circunscrições uninominais (“voto distrital”), que maximizava o controle do processo pelos mandões locais. Desde o princípio, as listas eram abertas. De lá para cá, o sistema se mantém, com ajustes no número de vagas por UF, na fórmula de distribuição das sobras, no uso ou não do quociente eleitoral como cláusula de barreira e na permissão ou não de coligações partidárias.
São muitas as críticas dirigidas ao sistema eleitoral brasileiro: contribui para a ampliação do número de legendas com representação parlamentar, personaliza a disputa política, fragiliza os partidos, exige demais da capacidade de escolha do eleitor comum. Não é meu propósito aqui discutir os prós e contras dele em relação às alternativas em geral propostas (fechamento das listas, voto distrital, voto distrital misto). O ponto é que o distritão piora todos os problemas hoje apontados no sistema eleitoral vigente.
Concedo que o distritão é um sistema cuja lógica é de fácil compreensão: os mais votados se elegem. Mas, além disso, é difícil encontrar nele outras qualidades. Sistemas eleitorais buscam privilegiar (ou acomodar) dois objetivos divergentes, que são facilitar a tarefa de compor maiorias parlamentares e dar voz aos diferentes interesses sociais. O distritão tem a característica de operar simultaneamente contra ambos os objetivos.
Ele abole a proporcionalidade na distribuição de cadeiras entre as listas partidárias, mas mantém os distritos plurinominais vinculados às unidades das federações (ou, no caso das eleições municipais, aos municípios) – e assim transforma a disputa eleitoral numa corrida maluca entre os candidatos. Ganham os que obtêm mais votos, independentemente dos partidos. Vendido como forma de valorizar o voto popular, na verdade ele amplia o desperdício de sufrágios. Vamos supor que o candidato “A” obtenha 80 mil votos e se eleja. O candidato “B” também se elege, na última vaga, com 20 mil votos. Ora, isto significa que 60 mil votos dados a “A” foram desperdiçados: ele só precisava de 20 mil para obter a cadeira. No sistema proporcional, hoje em vigor, esses 60 mil “extras” ajudam a eleger correligionários de “A”. O distritão destrói de vez a solidariedade intrapartidária.
A justificativa principal para isso é evitar o chamado “efeito Tiririca”: candidatos pouco sufragados chegam ao parlamento graças à grande votação de um puxador de voto. Esse espantalho já levou a mudanças bisonhas nas regras eleitorais, como a que nega mandato a quem tenha obtido votação inferior a 10% do quociente eleitoral. O problema, porém, não está nas regras, mas nos partidos. Se as listas fossem coerentes, isto é, se os partidos tivessem compromissos programáticos claros, seria mais do que razoável permitir que os votos “em excesso” do candidato ”X” contribuíssem para a eleição de seu correligionário Y”. O distritão, portanto, opta pelo caminho de matar o paciente para eliminar a doença.
Ao mesmo tempo, ele abre as portas para outro “efeito Tiririca”: a eleição de celebridades midiáticas sem trajetória de militância política. Sem a mediação efetiva dos partidos, a competição torna-se ainda mais favorável para pessoas que possuem qualquer tipo de visibilidade pública (como estrelas do show business em curva descendente).
Reclama-se que a fragmentação das bancadas na Câmara é excessiva – em 2018, foram eleitos deputados de 30 partidos e o índice de fracionamento de Rae, que mede a dispersão parlamentar, chegou a 0,94 (de um máximo matematicamente possível de 0,998). Com o distritão, isso só tende a se agravar. Cada candidato teria incentivo para buscar um partido para chamar de seu, evitando disputas internas e a associação com escândalos alheios. A criação de legendas partidárias para depois vendê-las a interessados nos estados, que já é um negócio florescente no Brasil, passaria a ocorrer em escala industrial. Justamente por isso, a ideia de exigir fidelidade partidária para contrabalançar os efeitos do sistema eleitoral, como propôs certa vez um defensor do distritão, o jurista Ives Gandra pai, é inócua.
Com o distritão, em 2022 o número de partidos que elegem representantes certamente bateria na casa dos 50. Não sou dos que acham que esse número é necessariamente só um problema. Se fossem 50 posições políticas participando da discussão, teríamos também ganhos. Mas certamente não será o caso.
Quem patrocina a ideia do distritão são representantes notórios da velha política no Brasil. Mas há uma proposta com cara mais moderninha que corre em paralelo – e que, na verdade, depende do distritão para poder ser implantada plenamente. É a proposta de candidaturas avulsas, que tem, entre suas principais defensoras, jovens deputadas como Áurea Carolina (Psol-MG) e Tabata Amaral (Lemann-SP). O entusiasmo com a candidatura avulsa é revelador de um mal que atinge uma parcela considerável de militantes da nova geração: personalismo excessivo, pouca disposição para o trabalho por excelência de construção coletiva que é o partido.
Seria rompido o monopólio que os partidos têm da representação eleitoral. Qualquer um poderia se candidatar, sem passar por convenção partidária, mesmo sem estar filiado. O argumento é que esses candidatos teriam melhores condições de representar minorias – mulheres, indígenas, LGBTs etc. Ninguém nega que as estruturas partidárias frequentemente são oligarquizadas e muitas vezes impõem obstáculos a integrantes de grupos minoritários. Mas a solução, uma vez mais, é implodir os partidos?
Quem mais ganha com a personalização da disputa, que as candidaturas avulsas promovem? Não há dúvida: celebridades e subcelebridades – e donos do dinheiro. É isso que nós queremos? Uma representação política tomada por artistas e esportistas decadentes e por marionetes de milionários? Os partidos seriam fragilizados de vez. Os grandes beneficiados seriam as iniciativas de captura empresarial da política, do tipo do RenovaBR, Acredito e RAPS. No Congresso, esse contingente de eleitos “soltos”, comprometidos apenas com a própria carreira, desorganizaria de vez os trabalhos parlamentares, que têm os partidos como unidade fundamental.
Cabe lembrar que a organização da disputa política em torno de partidos serviu para deselitizá-la e dar voz aos interesses das pessoas comuns. Eles foram a ferramenta indispensável para superar o regime de representação de “notáveis”. Com todos os problemas que tem, o controle dos partidos sobre a apresentação de candidaturas força negociações e é um freio às ambições dos detentores de visibilidade pública ou capital econômico. A filiação partidária impõe compromisso ao candidato, faz com que ele responda publicamente por um projeto que o transcende.
Trata-se de outro ponto essencial: projeto. Muitas das funções tradicionais dos partidos, como expressão de interesses e canalização de demandas, são hoje exercidas por outros instrumentos. Mas não a função de articular os diferentes interesses e demandas num projeto abrangente, dotado de alguma consistência – esta continua sendo prerrogativa das organizações partidárias. Sem partidos, a política tende se concentrar em pautas localizadas e dispersas.
Como se vê, o efeito do esvaziamento dos partidos é muito mais grave para o campo popular, para quem não tem os seus interesses já incorporados na institucionalidade vigente, para quem tem a ambição de promover uma transformação radical do mundo social. É deste lado que está a necessidade de formar organizações coletivas que gerem seus próprios líderes e de articular alternativas compreensivas à ordem existente.
O distritão e as candidaturas avulsas já são ideias ruins, quando pensada a representação política em termos abstratos. Quando analisadas suas consequências efetivas, é possível perceber também seu caráter profundamente conservador.